JOÃO UBALDO RIBEIRO
Publicado em O Estado de S.Paulo - 26/08/2012
A vida cada vez vale menos, como se vê a todo instante. No Brasil, não vale
nada, ou quase nada. Vale em nossas leis, se bem que cada vez mais desdentadas e
avacalhadas pelas chicanas processuais que propiciam, notadamente para os ricos.
Na prática, o que vemos é gente agonizando abandonada nos hospitais públicos e
mortes violentas por todos os lados. O jovem delinquente compra sua primeira
pistola e, para experimentá-la, mata alguém na primeira oportunidade. Um homem,
como aconteceu não faz muito em Brasília, mata a namorada e, no dia seguinte,
comparece a uma delegacia, revela o crime, entrega o corpo da vítima e a arma, e
é também solto na hora.
Matar, no Brasil, é muito mais banal do que qualquer um de nós gosta de
admitir. É muito fácil também. Como têm podido observar os que leem jornais e
assistem a noticiários, há cidades (basta procurar no Google com jeito) onde é
fácil contratar um pistoleiro e mandar matar um desafeto, contando ainda com a
conveniente circunstância de que a grande maioria dos homicídios não é
esclarecida. Para os casos mais triviais, dizem que sai muito em conta, valendo
de sobra uma herança em disputa ou até um mero desagravo. E tem o carro, o
método mais fácil e seguro. Qualquer um pode tomar umas talagadas, pegar o carro
e matar quem desejar. A relação custo-benefício é incalculavelmente a favor do
assassino e a embriaguez, em certas subculturas nacionais, é até atenuante. Em
suma, entre nós há pouca diferença entre matar um rato e uma pessoa. Para não
falar em matar um bicho do mato, mesmo em caso de necessidade, porque o Ibama
prende e o crime é inafiançável.
Mas, mesmo onde matar não é tão fácil e não há tamanha impunidade, eliminar
gente continua uma atividade prioritária em boa parte do mundo e há quem faça
disso o grande objetivo de sua existência. Um carro-bomba ou avião explodido
ali, um massacre acolá, um genocídio alhures. Ninguém mais, com exceção dos
atingidos, dá muita importância a notícias sobre esse tipo de ocorrência, é tudo
estatística. Dezenas de mortos, centenas de feridos, centenas de mortos,
milhares de feridos, acaba tudo misturado e esquecido.
Na verdade, matar o semelhante é tão importante para os humanos que sempre
houve um próspero mercado para os fornecedores dos meios para a eliminação do
outro. É interessante que, quando pensamos em marcianos de ficção científica
antiga, achamos que esses marcianos, habitantes de um planeta apenas um pouco
menor que o nosso, seriam um todo homogêneo e não, como nós, divididos
ferozmente entre territórios e categorias as mais disparatadas e arbitrárias e
indo às fuças uns dos outros o tempo todo. Quer dizer, achamos que o certo seria
vivermos harmoniosamente, como seres do mesmo planeta, que morrem imediatamente,
se não mantiverem contato direto com o que os circunda, a começar pelo ar e o
alimento. Mas, apesar disso, matamos os semelhantes a torto e a direito e
frequentemente consideramos nobres os motivos, mesmo que saibamos que essa
nobreza está no olho de quem mata.
Mas, não sei por que, o que mais me intriga são os fabricantes da morte,
agora mais vivamente, com as notícias de armas químicas e biológicas na Síria.
Muitos venenos foram descobertos por acaso, assim como cepas virulentas de
micro-organismos, mas há cientistas dedicados a criar os mais devastadores
agentes de morticínio e sofrimento em massa. Dizem-nos que os mocinhos não
estocam essas armas, só os bandidos - ao que manda a sensatez responder com um
"morda aqui". Ninguém sabe que pestes e pragas diabólicas estão encapsuladas nos
arsenais, ou quando algum desatinado fará uso delas.
Uma dessas doenças, já se divulgou faz tempo, é o antraz, também conhecido
como carbúnculo, tão brabo que, no Nordeste, virou palavrão, através da
corruptela "cabrunco". Normalmente só contraído por contato direto com material
infectado, em sua forma "evoluída" deve pegar até pelo pensamento. A intenção é
matar, mas já li que não se despreza o importante "efeito moral", obtido pela
reação dos contaminados, ao perceberem, a si mesmos e aos circundantes, cobertos
de pústulas e chagas repulsivas.
Está bem, não se deve julgar o próximo, mas o que é que faz o sujeito
trabalhar numa coisa dessas e chegar intencionalmente a esses resultados? Dizer
que a ciência, como a justiça, é cega e, portanto, se desenvolver uma forma
altamente letal de uma doença está nos limites da ciência, ela deve ser
desenvolvida é a mesma coisa que saber que está nos limites da ciência projetar
uma única bomba que destruirá a Terra e fazer essa bomba. Não era necessário o
antraz de laboratório. Equipes de cientistas trabalharam sabe-se lá quanto tempo
para desenvolvê-lo, sabendo perfeitamente para que serviria e como poderia ser
empregado. Será que nem um só desses caras se detém para pensar na
monstruosidade que está ajudando a gerar? Como será que eles fazem os cálculos
para estimar o número de infectados por hora, o número de óbitos por dia e assim
por diante, sem imaginar o sofrimento causado?
Estive assistindo a um vídeo interessante, na internet. Um químico fazia uma
palestra sobre uma bela rãzinha alaranjada, nativa da América Central, do
tamanho da unha do polegar. A rãzinha é predada por pássaros e precisa de uma
defesa eficaz. Aí produz na pele um dos venenos mais potentes já descobertos,
que atua em doses infinitesimais. Não dá nem para abrir o bico direito. Com o
sistema nervoso bloqueado em milissegundos, o pássaro cai duro para trás e a
rãzinha salta fora. Ainda não sintetizaram o veneno, mas é inevitável pensar que
alguém pode estar se dedicando a isso, para legar ao futuro a possibilidade de,
com uma ampolazinha jogada do alto, extinguir toda a vida animal numa área
qualquer. Pode, não; deve estar, nossa espécie não falha.