Theófilo Silva
De todos os personagens trágicos de
Shakespeare, que tiraram a própria vida, nenhum sofreu mais e tão sinceramente
do que Othelo. Ele, atingido pelo ciúme, “o monstro de olhos verdes”, matou a
esposa, a fiel e apaixonada Desdêmona – achava que ela o tinha traído – por
causa das intrigas de um homem diabólico que contaminou sua mente com mentiras.
Antes de matar-se, cheio de culpa e dor, olhando para o perverso Iago, disse:
“pergunta a esse meio demônio por que envenenou meu sangue e minha alma”.
Não há glamour em tragédias da vida real. É por isso mesmo que pintores,
poetas, músicos, tratam, em seu universo criativo, de pintar tragédias com cores
de redenção para celebrar os que morrem. É uma forma de homenagear os que
partem, consolar os que ficam, e de explicar a partida, muitas vezes rápida,
dolorosa, sem despedidas ou cerimônias de adeus. Esse é o trabalho da arte.
Shakespeare chamava a morte de viagem misteriosa. No solilóquio Ser ou Não
Ser, ele discute a “viagem” por intermédio do atormentado Hamlet, que questiona
a própria existência, perguntando: “Qual é a ação mais nobre: sofrer os dardos e
flechas de um destino ultrajante, ou opor-se a um mar de calamidades para
pôr-lhes fim, resistindo? Morrer... Dormir!”. E aponta algumas das causas que
podem fazer da vida uma desgraça: “Os ultrajes e desdéns do tempo, as angústias
do amor desprezado, as demoras da lei, a afronta do opressor, a insolência
oficial e os golpes que o homem de mérito recebe de pessoas indignas”. Quando:
“Poderia encontrar quietude com um simples punhal”.
Mas Hamlet, diante de
tantos problemas, vai em frente, e não se mata. Para alguns críticos Hamlet não
pensava em morrer, ele simplesmente não aceitava a condição humana a que todos
nós estamos sujeitos. O jovem príncipe acaba morrendo pelas mãos de um homem
fraco, manipulado pelo tio dele.
Shakespeare via em muitos de nós um toque
trágico. Uma série de coisas acumuladas em nossa mente e espírito, que, se
acionadas por algum fato novo desestabilizam, e podem desencadear a tragédia. A
desgraça dificilmente não conta com a colaboração de outrem para que siga seu
curso. É possível que ela não seja inevitável. Podemos apontar os casos dos
jovens Romeu e Julieta, em que a tragédia se consumou em função de um acaso, que
contou com a colaboração do ódio entre os familiares dos dois jovens
adolescentes. No caso de Cássius e Brutus, em Júlio César, e de Cleópatra e
Marco Antônio, na peça homônima, não havia realmente nenhuma saída para eles. Ou
tiravam a própria vida – e isso é história – ou seriam mortos cruelmente por
seus inimigos.
O castigo mais justo e merecido em toda a obra de Shakespeare
– e que levou Freud “às raias da loucura” –, foi o de Lady Macbeth. Se achando
forte e inquebrantável, a perversa dama não hesitou muito em matar, em conluio
com o marido, o bondoso rei Duncan. No entanto, cometido o ato, que tornou ela e
seu marido reis da Escócia, passa a ter visões, torna-se sonâmbula e repete um
gesto simulando lavar continuamente as mãos, com se quisesse limpar a sujeira de
seu crime. Ela não resistiu e, já enlouquecida, jogou-se das torres do castelo.
Muitos de nós, às vezes, somos confrontados com forças muitos poderosas que
não conseguimos controlar, o que Shakespeare chamava de golpes da fortuna, e se
somos atingidos por eles um simples toque pode precipitar a tragédia. Tragédias
que nos deixam inconsoláveis, como a que levou um de nossos amigos! Então, só
resta nos despedirmos como Horácio se despediu de Hamlet: “Boa Noite, gentil
príncipe! Que legiões de anjos te conduzam, cantando, ao eterno descanso!”.
Texto retirado do Blog Rádio do Moreno, publicado originalmente em:
Um abraço.