domingo, 28 de julho de 2013

Discurso do Papa Francisco no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (27 de julho de 2013).

Excelências,
Senhoras e Senhores!
Agradeço a Deus pela possibilidade de me encontrar com tão respeitável representação dos responsáveis políticos e diplomáticos, culturais e religiosos, acadêmicos e empresariais deste Brasil imenso. Saúdo cordialmente a todos e lhes expresso o meu reconhecimento.
Queria lhes falar usando a bela língua portuguesa de vocês mas, para poder me expressar melhor manifestando o que trago no coração, prefiro falar em castelhano. Peço-vos a cortesia de me perdoar!
Agradeço as amáveis palavras de boas vindas e de apresentação de Dom Orani e do jovem Walmyr Júnior. Nas senhoras e nos senhores, vejo a memória e a esperança: a memória do caminho e da consciência da sua Pátria e a esperança que esta, sempre aberta à luz que irradia do Evangelho de Jesus Cristo, possa continuar a desenvolver-se no pleno respeito dos princípios éticos fundados na dignidade transcendente da pessoa.
Todos aqueles que possuem um papel de responsabilidade, em uma Nação, são chamados a enfrentar o futuro "com os olhos calmos de quem sabe ver a verdade", como dizia o pensador brasileiro Alceu Amoroso Lima ["Nosso tempo", in: A vida sobrenatural e o mundo moderno (Rio de Janeiro 1956), 106]. Queria considerar três aspectos deste olhar calmo, sereno e sábio: primeiro, a originalidade de uma tradição cultural; segundo, a responsabilidade solidária para construir o futuro; e terceiro, o diálogo construtivo para encarar o presente.
1. É importante, antes de tudo, valorizar a originalidade dinâmica que caracteriza a cultura brasileira, com a sua extraordinária capacidade para integrar elementos diversos. O sentir comum de um povo, as bases do seu pensamento e da sua criatividade, os princípios fundamentais da sua vida, os critérios de juízo sobre as prioridades, sobre as normas de ação, assentam numa visão integral da pessoa humana. Esta visão do homem e da vida, tal como a fez própria o povo brasileiro, muito recebeu da seiva do Evangelho através da Igreja Católica: primeiramente a fé em Jesus Cristo, no amor de Deus e a fraternidade com o próximo. Mas a riqueza desta seiva deve ser plenamente valorizada! Ela pode fecundar um processo cultural fiel à identidade brasileira e construtor de um futuro melhor para todos. Assim se expressou o amado Papa Bento XVI, no discurso de abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Aparecida.
Fazer que a humanização integral e a cultura do encontro e do relacionamento cresçam é o modo cristão de promover o bem comum, a felicidade de viver. E aqui convergem a fé e a razão, a dimensão religiosa com os diversos aspectos da cultura humana: arte, ciência, trabalho, literatura... O cristianismo une transcendência e encarnação; sempre revitaliza o pensamento e a vida, frente a desilusão e o desencanto que invadem os corações e saltam para a rua.
2. O segundo elemento que queria tocar é a responsabilidade social. Esta exige um certo tipo de paradigma cultural e, consequentemente, de política. Somos responsáveis pela formação de novas gerações, capacitadas na economia e na política, e firmes nos valores éticos. O futuro exige de nós uma visão humanista da economia e uma política que realize cada vez mais e melhor a participação das pessoas, evitando elitismos e erradicando a pobreza. Que ninguém fique privado do necessário, e que a todos sejam asseguradas dignidade, fraternidade e solidariedade: esta é a via a seguir. Já no tempo do profeta Amós era muito forte a advertência de Deus: «Eles vendem o justo por dinheiro, o indigente, por um par de sandálias; esmagam a cabeça dos fracos no pó da terra e tornam a vida dos oprimidos impossível» (Am 2, 6-7). Os gritos por justiça continuam ainda hoje.
Quem detém uma função de guia deve ter objetivos muito concretos, e buscar os meios específicos para consegui-los. Pode haver, porém, o perigo da desilusão, da amargura, da indiferença, quando as aspirações não se cumprem. A virtude dinâmica da esperança incentiva a ir sempre mais longe, a empregar todas as energias e capacidades a favor das pessoas para quem se trabalha, aceitando os resultados e criando condições para descobrir novos caminhos, dando-se mesmo sem ver resultados, mas mantendo viva a esperança.
A liderança sabe escolher a mais justa entre as opções, após tê-las considerado, partindo da própria responsabilidade e do interesse pelo bem comum; esta é a forma para chegar ao centro dos males de uma sociedade e vencê-los com a ousadia de ações corajosas e livres. No exercício da nossa responsabilidade, sempre limitada, é importante abarcar o todo da realidade, observando, medindo, avaliando, para tomar decisões na hora presente, mas estendendo o olhar para o futuro, refletindo sobre as consequências de tais decisões. Quem atua responsavelmente, submete a própria ação aos direitos dos outros e ao juízo de Deus. Este sentido ético aparece, nos nossos dias, como um desafio histórico sem precedentes. Além da racionalidade científica e técnica, na atual situação, impõe-se o vínculo moral com uma responsabilidade social e profundamente solidária.
3. Para completar o "olhar" que me propus, além do humanismo integral, que respeite a cultura original, e da responsabilidade solidária, termino indicando o que tenho como fundamental para enfrentar o presente: o diálogo construtivo. Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo com o povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. Um país cresce, quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: cultura popular, cultura universitária, cultura juvenil, cultura artística e tecnológica, cultura econômica e cultura familiar e cultura da mídia. É impossível imaginar um futuro para a sociedade, sem uma vigorosa contribuição das energias morais numa democracia que evite o risco de ficar fechada na pura lógica da representação dos interesses constituídos. Será fundamental a contribuição das grandes tradições religiosas, que desempenham um papel fecundo de fermento da vida social e de animação da democracia. Favorável à pacífica convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado que, sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade, favorecendo as suas expressões concretas.
Quando os líderes dos diferentes setores me pedem um conselho, a minha resposta é sempre a mesma: diálogo, diálogo, diálogo. A única maneira para uma pessoa, uma família, uma sociedade crescer, a única maneira para fazer avançar a vida dos povos é a cultura do encontro; uma cultura segundo a qual todos têm algo de bom para dar, e todos podem receber em troca algo de bom. O outro tem sempre algo para nos dar, desde que saibamos nos aproximar dele com uma atitude aberta e disponível, sem preconceitos. Só assim pode crescer o bom entendimento entre as culturas e as religiões, a estima de umas pelas outras livre de suposições gratuitas e no respeito pelos direitos de cada uma. Hoje, ou se aposta na cultura do encontro, ou todos perdem; percorrer a estrada justa torna o caminho fecundo e seguro.
Excelências,
Senhoras e Senhores!
Agradeço-lhes pela atenção. Acolham estas palavras como expressão da minha solicitude de Pastor da Igreja e do amor que nutro pelo povo brasileiro. A fraternidade entre os homens e a colaboração para construir uma sociedade mais justa não constituem uma utopia, mas são o resultado de um esforço harmônico de todos em favor do bem comum. Encorajo os senhores no seu empenho em favor do bem comum, que exige da parte de todos sabedoria, prudência e generosidade.
Confio-lhes ao Pai do Céu, pedindo-lhe, por intercessão de Nossa Senhora Aparecida, que cumule de seus dons a cada um dos presentes, suas respectivas famílias e comunidades humanas de trabalho e, de coração, a todos concedo a minha Bênção.


sábado, 27 de julho de 2013

A máscara do Rio precisa cair

 Por Arnaldo Block

Lembro-me bem da manhã ensolarada, dois anos atrás, em que fui visitar o Pavão-Pavãozinho, em Ipanema, que havia virado UPP. Achei interessante, mas estranhei aquela fachada com cara de prédio residencial, o elevador bonito, panorâmico, e o grande corredor estilo sci-fi levando a uma porta, uma simples porta, que, ao abrir-se, dava, finalmente, para a realidade: a favela de sempre, com suas vielas e sua miséria.
Tomava guaraná numa birosca quando se iniciou um tumulto. Nada demais, briga familiar, um primo louco mamado levando um “pedala”. Chamou-me atenção um pitbull solto que resolveu não atacar ninguém, embora tenha me olhado com desconfiança.
De lá para cá, o Rio viveu uma euforia: outros morros libertos, choque de ordem, Copa do Mundo e Olimpíadas no papo, pré-Sal: anunciava-se um ciclo de ouro para a cidade, com explosão hoteleira, maquiagem das praias, Porto Maravilha, BRTs, algo jamais visto, nem quando o Rio era capital.
Cabral não cabia em si. Paes era só paz. Beltrame, o paladino da Justiça. Não havia quem, impunemente, não comprasse a ideia. E quem ousasse dizer um “ai”, pedir prudência, era tachado de inimigo, espírito de porco, na contramão das evidências.

sábado, 29 de junho de 2013

Rio de Janeiro: protestos V

Amanhã, como não pode deixar de ser, deve acontecer uma nova manifestação PACÍFICA nas proximidades do Maracanã.
A concentração está marcada para às 10 horas, na Praça Saens Pena, na Tijuca e a organização pede que se evite afrontas e provocações. A questão é reivindicar e conquistar nossos direitos e não destruir o pouco que temos.
Espero honestamente que seja pacífica e que se algum paspalho aparecer com ideia de tocar horror, que ele seja rapidamente identificado e devidamente enquadrado.
Espero ainda que nossas autoridades tenham revisto a forma de conduta da nossa polícia e que os treinamentos que foram tão alardeados nos jornais e TVs ao longo dos últimos anos de fato sirvam para alguma coisa.
Para estes últimos, deixo o vídeo abaixo como um pedido.

Rio de Janeiro: protesto DELL

Protesto aqui e alerto a qualquer cidadão: não compre computador na DELL.
As máquinas são boas, mas não melhores do que a concorrência, porém o suporte técnico e a forma como a empresa DELL atende a um proprietário pessoa física de um produto seu é simplesmente insultante, vergonhosa e descabida.
Para começo de conversa a DELL não possui um SAC, simplesmente você não tem como concretamente dirigir sua queixa ou sugestão, restando apenas

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Rio de Janeiro: protestos IV

Ver nos jornais da noite que a população da favela da Rocinha junto com moradores da favela do Vidigal fizeram uma manifestação, precedida de passeata, na porta da casa do governador do Rio de Janeiro sem qualquer problema, é para mim uma grande alegria.
Melhor ainda é ver pessoas da comunidade solicitarem

sábado, 22 de junho de 2013

Rio de Janeiro: protestos III

Um chute nos serviços públicos de má qualidade

O Rio de Paz mais uma vez comprovou que é possível fazer manifestações de modo pacífico. Levou às areias de Copacabana 500 bolas pintadas com uma pequena cruz vermelha representando

Rio de Janeiro: protestos II

O Rio de Janeiro vinha vivendo uma falsa euforia que parece abalada com os protestos desta semana.
Com a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora em algumas comunidades da cidade, especificamente as comunidades que ficam no entorno ou próximo aos locais dos futuros eventos na cidade e a consequente diminuição da violência diretamente ligada ao tráfico de drogas, vendeu-se a ideia de que todos os problemas

Rio de Janeiro:protestos

O que vejo no Rio de Janeiro hoje muito me alegra.
Já era a hora de mostramos nossa tão falada indignação de forma clara para aqueles que ocupam os cargos de gestores da nossa cidade.
O Rio dos últimos anos se transformou em um palco de oportunidades para poucos ganharem muito sem dar satisfação a quase ninguém.
Me alegra ver as pessoas comuns desta cidade  constrangerem do governador viajador e seus secretários de lenço na cabeça nas ruas de Paris a empresários como o senhor Cavendish que "desapareceu" estrategicamente , pois juntos eles são responsáveis pela reforma

domingo, 12 de maio de 2013

Artigo: Os maiores medos das mães.

Artigo publicado no site da Revista Época, por Ruth de Aquino, no dia 10/05/2012.
Para ver o original siga o link abaixo:
http://revistaepoca.globo.com//Mente-aberta/ruth-de-aquino/noticia/2013/05/os-maiores-medos-das-maes.html

Não importa a classe social. Não importa a idade. Ou o endereço e a profissão. Não importa se é casada ou solteira. O maior medo da mãe é que seu filho ou sua filha não seja feliz. Por mais impalpável que seja esse medo, por mais subjetivo que seja o conceito de felicidade, a mãe, em sua onipotência, acredita ser a pessoa mais essencial para fazer de seu filho ou de sua filha um adulto feliz.
Um dos medos comuns é não ser uma boa mãe – e esse adjetivo tem dezenas de significados. O que é ser boa mãe? Ela costuma ter obsessão em manter o filho e a filha alimentados, agasalhados e saudáveis, qualquer que seja a idade, como se isso os livrasse de todas as maldades do mundo. Tantas mulheres se culpam pelas desventuras dos filhos. Onde foi que errei?

domingo, 28 de abril de 2013

Artigo: O Preço da Moda


Artigo publicado por Helena Celestino no jornal O Globo de hoje, 28/04/2013 e no site do mesmo em:                                              http://oglobo.globo.com/mundo/o-preco-da-moda-8233528 .


São praticamente irresistíveis os vestidos de verão da Primark, a marca de fast fashion inglesa que faz a festa das turistas brasileiras e veste seis entre dez jovenzinhas na ilha da rainha. Com cinco libras e um corpinho de 20, dá para sair vestida à la Kate Moss, a mais cool das modelos britânicas. Onde está o erro? A pechincha estilosa ficou politicamente incorreta demais depois do trágico desmoronamento de um edifício em Bangladesh onde são fabricadas essas peças, assim como parte da coleção da italiana Benetton, da espanhola Mango e da canadense Joe Fresh, todas grifes

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Poesia: A Procura da Poesia

Carlos Drummond de Andrade

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.


O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.


Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.


Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.


Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.


Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?


Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

domingo, 21 de abril de 2013

Drogas: legalizar ou não? se sim, em que condição?

Tenho ouvido e lido  sobre um movimento encapado pelo ex presidente Fernando Henrique a favor da legalização do uso das drogas ilícitas, especificamente a maconha.
Entendo que o consumo de drogas não pode ser visto apenas como um caso de polícia, mas que deva ser analisado

domingo, 14 de abril de 2013

Rio de Janeiro: Caro demais 2!

Que a especulação e a cobrança extorsiva vem imperando no Rio de Janeiro nos últimos anos, muitos dos que aqui moram já perceberam por sofrer na pele.
Mas cobrar 3,90 reais ou cerca de 2 dólares por uma lata de refrigerante é sinal que o absurdo tomou forma de monstro. Este foi o preço que me cobraram na praça de alimentação de um shopping na zona norte da cidade.
Como estamos com a cobrança liberada, em uma economia de mercado, cabe a cada um de nós lutar contra este tipo de prática e a luta no caso se faz não comprando nada a preços absurdos, pois o valaor quem dá somos nós quando aceitamos pagar o que é cobrado.
Aposto que uma semana de forte redução nas vendas e consequente encalhe do produto faz o preço ficar bem mais manso.
Está decisão é nossa e não adianta reclamar.
Um abraço.

Artigo: Autoviolência


Artigo de Nilton Bonder, publicado na "Folha de S. Paulo" de hoje, 14/04/2013, resume a guerra que vivemos no trânsito das grandes cidades.

"E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.
"A palavra automóvel, uma viatura com mobilidade própria, pode ser enganosa. Tem autonomia de potência, mas não tem, pelo menos até hoje, autonomia de condução."
A íntegra do texto:
"Quem conduz um automóvel é uma consciência. O que talvez seja mais reflexivo nesse prefixo (auto) seja justamente a característica maior da consciência: tudo que por ela é gerido regressa a ela mesma, num efeito bumerangue, impactando e determinando quem ela é.
O carro engana fazendo parecer que é uma entidade independente, detentora de uma placa própria, quando sua identidade sou eu e meu nome. Descobrimos isso quando a multa vem personalizada, momento de susto e de breve recusa em assumir-se a autoria.
O carro faz parecer que existia outro personagem que não o próprio condutor. Porém a lataria não pode ocultar o personagem e o Renavam não pode esconder a habilitação. O insulfilm não tem como mascarar o rosto e o deslocamento não tem como deixar para trás o que foi feito.
Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no meio da rua. Porque buzinar é como chegar e gritar no ouvido do outro. Porque acelerar em direção a um pedestre é como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado. Porque ultrapassar perigosamente é como sair armado.
Porque matar no trânsito, não nos enganemos, para a consciência que conhece as nossas imprudências, é sempre doloso, sempre com a intenção de matar. O auto de automóvel nos engana a todos e a maioria é pior como motorista do que como cidadão. Tem mais pecados registrados nas fiscalizações eletrônicas, e mais ainda quando elas não estão por perto, do que na vida de pedestre.
Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais perigosa. Sinal de que nossa consciência assume que tem menos responsabilidade dentro do que fora dessa entidade.
O condutor é uma consciência e uma consciência é um bicho vestido. As sensações de anonimato e de que o pequeno espaço de nossa carroceria é privado fazem o bicho se despir como ele não faz do lado de fora. E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.
Certa vez, um rabino estava numa carroça quando começou a subida de uma ladeira. Ele não hesitou em saltar da carroça e se pôs a andar ao lado do cavalo. O cocheiro questionou sua atitude, ao que ele explicou que na subida ficava difícil para o animal. O cocheiro reagiu: "Mas é apenas um animal... Então o senhor, um ser humano, é quem tem que fazer força e ficar cansado?". O rabino respondeu: "Justamente por isso, como sou um ser humano, não quero me ver no futuro num litígio com um cavalo!".
O condutor é aquele que enxerga as interações e cuida não só para fazer o seu percurso, mas também para não se ver no futuro em litígios com animais, seja na vida real ou em sua própria consciência."

Nilton Bonder é rabino da Congregação Judaica do Brasil no Rio de Janeiro, é autor de "A Alma Imoral", entre outros"

sábado, 13 de abril de 2013

Extermínio Público.

Pouco a pouco a prefeitura do Rio de Janeiro vem "eliminando" seus funcionários da saúde e sua rede própria através do fechamento de algumas das suas unidades. 
Primeiro a maternidade Praça XV, depois um hospital dedicado à mulher em Curicica e agora o pequeno Sales Neto no bairro do Rio Comprido, unidade de atendimento pediátrico que será fechada sem qualquer explicação. Seus funcionários já foram comunicados que ou escolhem outro lugar ou estão fora e segundo consta, tudo foi decidido sem qualquer consulta ou informação prévia.
Curioso uma prefeitura fechar uma unidade pediátrica quando não existe outra para substituir. Parece uma forma escusa de se criar a necessidade de uma OS da saúde, prontinha para atender a demanda existente, desde que haja um régio contrato para tal, claro!.
E tudo isto acontecendo com o silêncio quase cúmplice da nossa imprensa.
Um abraço.

domingo, 7 de abril de 2013

Opinião: entrevista

 O país do autoengano

Para psicanalista, recentes erupções de violência no Rio de Janeiro mostram que, sob a fachada do ufanismo desenvolvimentista, o Brasil esconde as velhas mazelas de sua modernização imperfeita

Publicado no site do jornal O Estado de São Paulo em 06 de abril de 2013. http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-pais-do-autoengano,1017818,0.htm

 Por: Ivan Marsiglia

O conceito de "retorno do reprimido", descrito por Sigmund Freud pela primeira vez em 1895, é um mecanismo de defesa segundo o qual os conteúdos reprimidos, expulsos da consciência de uma pessoa, tendem a reaparecer constantemente. Três tragédias ocorridas sucessivamente no Rio de Janeiro nos últimos dias parecem sintomas de algum distúrbio oculto. Na manicure que asfixiou sem dó um menino de 6 anos com quem convivia, no estupro brutal de uma turista americana que pegou uma van em Copacabana e na agressão incompreensível que teria provocado a queda de um ônibus de cima de um viaduto expressam-se os sintomas de um antigo mal-estar de nossa civilização: a violência. 
 Nascido em São Paulo e radicado no Rio, o filósofo e psicanalista André Martins Vilar de Carvalho vê nesses acontecimentos a ponta do iceberg do autoengano nacional. "A propaganda enganosa da pacificação do Rio é a mesma do Engenhão construído há só cinco anos, que corre o risco de cair na cabeça da multidão", compara. "O Brasil vive uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar dinheiro com o social."
 Doutor em filosofia pela Universidade de Nice e em teoria psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor associado, Martins diz ter a sensação de que tudo é feito hoje no País apenas para montar uma fachada que esconde nossos problemas mais profundos. Isso é perigoso e "favorece junto a pessoas com menos estrutura psíquica a ideia de que esta é uma terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos". O professor sustenta que as psicopatias, embora individuais e independentes de formação ou classe social, relacionam-se inevitavelmente ao descaso persistente com a primeira infância em nosso país. 

Na entrevista a seguir, o autor de Pulsão de Morte? - Por uma Clínica Psicanalítica da Potência (Editora UFRJ, 2010) e O mais Potente dos Afetos: Spinoza e Nietzsche (Martins Fontes, 2009) vê na violência que emerge no cotidiano nacional os sinais da modernização imperfeita do País - em especial a marca persistente da escravidão, que "naturalizou" o fosso social brasileiro e a cultura do privilégio e do interesse mesquinho, que se manifestam tanto na corrupção política quanto nos instintos particularmente animais de certos empresários.

O estupro de uma turista dentro de uma van e o assassinato de um menino de 6 anos pela manicure que frequentava sua casa parecem ter feito o Rio despertar do sonho pacificador das UPPs para uma espécie de ‘retorno do reprimido’ da violência. O que houve?

Vejo as UPPs não como uma política ideal, mas possível, que age de maneira razoavelmente eficaz contra o crime organizado e o tráfico de drogas. Acontece que a violência que emerge agora não é fruto desse contexto. No caso da van, foram uma série de assaltos e estupros cometidos por três indivíduos e a manicure, uma mulher que cometeu o crime sozinha. O que vale colocar em questão aqui é esse "sonho pacificador", é a política local transformar uma iniciativa bem-sucedida em uma grande propaganda de um Rio de Janeiro pacificado. Isso é que é falso. Faço uma analogia, guardadas as devidas proporções, com o Engenhão interditado. Às vésperas da Copa do Mundo e da Olimpíada, a coisa é apresentada como se o Rio não tivesse mais problemas, virou uma cidade organizada, valorizada... Aí um estádio que foi construído cinco anos atrás corre o risco de desabar na cabeça da multidão. Descobre-se que a construção foi malfeita, obviamente por algum tipo de superfaturamento - e digo isso sem nenhum cuidado porque acho que é preciso dizer o óbvio. É a mesma propaganda enganosa que assistimos sobre a violência.

O colunista carioca Artur Xexéo escreveu, sobre os últimos acontecimentos, que ‘quando a cidade se olhar no espelho e vir o que ela realmente é por debaixo das muitas camadas de maquiagem e aplicações de botox, talvez descubra como se tornar maravilhosa de verdade’. O Rio e o Brasil padecem de certo distúrbio de autoimagem?

Concordo, inclusive em relação ao Brasil, que vive uma espécie de capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar dinheiro com o social, interessando-se pelo lucro a qualquer custo. A violência que escapa nesses dois exemplos, dos rapazes da van e da assassina do menino, é proveniente de indivíduos que refletem um descaso social como um todo. Para usar um termo que tem origem na filosofia política do século 17, o Brasil pode até ter um contrato social, mas ele está muito corrompido. E o que não temos é um pacto social, não existe um discurso de construção de fato de um país para todos. O que existe e, mais triste ainda, é aceito, são interesses individuais ou de pequenos grupos mesquinhos, mas não uma disposição de pensar o coletivo. A ideia do "cada um puxa a sardinha para seu lado" está legitimada socialmente no Brasil.

Então as oportunidades representadas pela organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas estão sendo jogadas fora?

Exatamente. Poderíamos estar aproveitando esses eventos para, dentro de um capitalismo minimamente responsável, utilizá-los para captar recursos para melhorias sociais. Todo mundo sabe disso, mas ninguém faz e ninguém cobra. Há um sentimento geral de que tudo é feito no Brasil hoje apenas para montar uma fachada. É algo muito desanimador. E que, no meu entender, favorece junto a pessoas que têm menos estrutura psíquica a ideia de que o Brasil é terra de ninguém, onde tudo pode ser feito, inclusive crimes hediondos.

Na mesma semana, a queda do ônibus de um viaduto durante uma briga banal entre o motorista e um passageiro mostrou até onde os impulsos agressivos do cotidiano podem levar. O que o fato de ambas as tragédias terem ocorrido no transporte público sinaliza?

Esse mesmo descaso com a coletividade. Não é por acaso que o transporte público tanto no Rio como em São Paulo, onde nasci, é tão ruim. E, a partir de um certo nível social ou de idade, ninguém mais quer andar de ônibus, por exemplo, ao contrário do que acontece na Europa ou nos EUA. O universitário que agrediu o motorista já tinha vários antecedentes de violência física. Aquele ônibus já registrava 40 multas, quase a metade por excesso de velocidade. Os motoristas não são fiscalizados e devem cumprir metas de número de viagens diárias. Como motoristas despreparados e sem formação continuam dirigindo? E a responsabilidade dessa companhia de ônibus? Por que não se interessa pela pressão sofrida por seus motoristas, mas ao contrário a exerce e a agrava? No caso dos três rapazes na van, também: se eles já haviam cometido diversos assaltos e estupros, com denúncias registradas inclusive em delegacias da mulher, por que nada foi feito? O mesmo pode ser dito quanto às diversas irregularidades absurdas vigentes no incêndio da boate em Santa Maria no Rio Grande do Sul, quando gestão privada e poder público se preocupavam exclusivamente com o lucro que o negócio gerava. É um problema não só político, mas jurídico. A Justiça brasileira tem que renovar sua forma de funcionar. E Brasília dá um péssimo exemplo com a corrupção, não só do mensalão, que pelo menos foi julgada, mas no sentido amplo da palavra - por sua falta de zelo com a res publica, a coisa pública.

De que maneira as ferramentas da psicanálise ajudam a compreender a violência?

É uma psicopatia grave a dessa moça que sequestrou e assassinou um menino com quem convivia havia três anos. O que se percebe é uma falta de identificação com o outro. Essas pessoas, seja a manicure, sejam os rapazes da van, manifestam uma perversidade e indiferença para com o outro. O processo de identificação com o outro se dá ao longo da vida, mas fundamentalmente na infância. Quando a criança lida com cuidadores hostis a ela, pode separar no processo identificatório - que está na origem da capacidade de se sensibilizar com o outro - aqueles com quem se sensibiliza e outros com por quem não sente nada. A pessoa que desenvolve essa psicopatia pode até nutrir sentimentos em relação à mãe, um amigo ou parente, mas não se sensibilizar, por exemplo, por uma criança de 6 anos que conviveu com ela, como aconteceu no crime da manicure. Ou pelas várias mulheres que esses homens estupraram, com uma violência capaz de quebrar ossos. Isso significa que filhos de classes mais pobres vão estar necessariamente mais inclinados a esse risco do que os ricos que estudaram em bons colégios? Não. Está aí o caso Suzane Richthofen para mostrar. Ou o próprio agressor do motorista do ônibus, que tinha nível universitário. Mas é preciso reconhecer coletivamente a importância desse cuidado na primeira infância - algo que o País não tem feito. Um exemplo é a falta de creches boas e em número suficiente. Aqui, de novo, não basta "entregar" fisicamente tais obras, mas se preocupar com a qualidade do que será vivenciado lá dentro. O mesmo acontece com a educação pré-escolar e no ensino fundamental. É algo gritante e urgente.

Dois dos crimes que o sr. cita tiveram um componente sexual - evidente no caso do estupro, mas presente também na acusação, feita pela manicure, de que estaria sendo assediada pelo pai do menino. Ambos não parecem ter sido cometidos só pelo benefício financeiro. Por que foram então?

Primeiro, não vejo que esses crimes possam ser atribuídos a aquelas pulsões agressivas do ser humano que Freud chamou de pulsão de morte ou destrutiva, ou a uma pulsão sexual vista como fundamentalmente bestial. Três rapazes que sentem mais prazer em violentar mulheres para poder ter uma relação sexual paradoxalmente não estão encontrando o gozo no sexo em si, mas na violência. Uma pessoa minimamente saudável, numa situação dessas, perderia o interesse, acharia deprimente. Muito mais do que expressar pulsões naturais ou bestiais do ser humano, eles estão se excitando sexualmente por uma violência hedionda e atroz contra outra pessoa. Eu vejo como parte dessa patologia comum da não identificação, que gera uma raiva difusa e uma destrutividade por essa vítima que eles não conhecem, como no caso da van, ou que conhecem muito bem, como no caso da manicure. Repito: a não identificação é construída em relações afetivamente precárias da primeira infância, não é "natural" ou instintiva.

Seu trabalho discute a forma como o corpo é manipulado na atual sociedade de consumo. Como a violência se insere nisso?

É outro aspecto, mas que se liga a esse que acabamos de discutir. A propagação, seja por interesses de mercado ou financeiros, de um ideal de corpo perfeito, de felicidade financeira perfeita, de relações sexuais performáticas, cria uma pressão psicológica social que suscita nas pessoas que se percebem distantes desses ideais um mal-estar, que pode se expressar em ressentimento. Que, em casos graves, pode se expressar em violência, destruição em relação a essa sociedade em que elas não se encaixam.

Então, a mistura do déficit social brasileiro com a expansão das possibilidades de consumo tem um potencial explosivo.

Sim. E aí podemos voltar àquele ponto inicial do sonho pacificador não só no Rio de Janeiro, mas do momento econômico do Brasil. Do que a gente está se vangloriando tanto? De que as classes C, D e E possam consumir? Isso é muito bom em vários aspectos. Agora, a possibilidade de consumir vir à frente da sociedade ter um pacto coletivo, sentir-se coletivamente envolvida numa melhor distribuição de renda, com melhorias na saúde, na educação e na moradia, é uma visão deturpada do coletivo. E a violência é uma face disso.

Há diversas explicações para o caráter violento da sociedade brasileira, desde as que culpam o trauma da colonização, as que apontam nossa prolongada escravidão, até o precário acerto de contas com violações cometidas durante a ditadura militar. Qual dos fatores concorre mais, em sua opinião?

Todos concorrem, mas o segundo, no meu entender, é sem dúvida o predominante: a nossa história de escravidão. Porque nos outros dois outros fatores podemos até encontrar aspectos positivos. No caso da colonização, apesar de toda a violência, tivemos a miscigenação, a mistura de raças, que nos trouxe qualidades distintivas. Mesmo em relação à ditadura, com a sua injustiça escandalosa, há o elogiável sentimento brasileiro de não cultivar o ódio ou a vingança. Já a herança escravocrata é particularmente perversa: ela cria um sentimento de desigualdade social aceito de maneira não questionada no Brasil. E também uma perversidade na relação de poder, a ideia de que inevitavelmente vai existir uma elite, que esse fosso de distribuição de renda "faz parte". É um sentimento muito ruim, muito prejudicial para o pacto coletivo de que precisamos.

O componente sexual dessas agressões pode também estar relacionado a essa herança escravocrata?

Sem dúvida. Na escravidão, como se sabe, as negras eram também escravas sexuais. O que difundiu uma percepção de que é legítimo submeter sexualmente o outro à força, de que o sexo não é nem precisa ser algo bom e consensual entre parceiros, um prazer ou uma alegria compartilhados. Isso é cultural, não um comportamento advindo de alguma natureza bestial do ser humano. Nem tem a ver com o sadomasoquismo, que é um jogo compartilhado. Mas com o desprezo pelo outro e o prazer pela violência.

Como o Brasil pode lidar melhor com esse conteúdo violento que parece tentar negar, seja nesse ufanismo pré-Copa, seja sob a eterna fantasia do povo alegre e festeiro?

A tese que defendo é que é inútil para o Brasil tomar a Europa como um modelo civilizatório. A civilização, no sentido europeu do termo, conseguiu combater uma violência primária, direta e sem mediação, ao preço de desenvolver uma violência secundária, que se dá em nome da civilização, de forma institucionalizada - e cujo maior exemplo são as guerras. Há menos violência nas ruas, mas mais violência contida que estoura no momento de uma guerra. No Brasil, a gente manteve uma violência primária que vem junto com o nosso tão propalado caráter cordial.

Que não é necessariamente positivo, como alguns interpretam.

É isso. A cordialidade, como bem definiu Sérgio Buarque de Holanda, vem da palavra "coração": é uma não mediação social. Algo assim: "Olha, vou ser muito gentil com você, se você for comigo. Mas se você não for, vou ser muito violento". É o contrário do que ocorre na Europa, onde predomina a polidez: mesmo pessoas muito zangadas e com raiva das outras, mantêm uma delicadeza dissimulada no trato. Enquanto a cordialidade aproxima, para o bem e para o mal, a polidez afasta, para o bem e para o mal. Penso que essa reflexão pode orientar o Brasil no sentido um projeto de coletividade: não vale a pena a gente aspirar a um processo civilizatório tal como o da Europa, pois muito dificilmente a gente vai aceitar essa imposição da lei, no sentido psicanalítico, pelo preço que isso acarreta. Então, insistir nisso é insistir num provincianismo brasileiro de pensamento que considera que o modelo dos outros é bom em todos os aspectos e o nosso ruim em todos os aspectos. Porém, para que serve observar esses modelos? Para tentarmos entender que um certo respeito às instituições, um pouco de polidez, e ter um pacto social de projeto de coletividade é preciso - mas isso pode ser feito a nossa maneira. Mantendo o aspecto cordial do povo, que aproxima as pessoas, mas aprendendo o valor do respeito às instituições, jurídicas, políticas e de organização urbana. Tentar importar a polidez europeia nunca vai dar certo e vira uma desculpa para não se fazer nada. E acaba nos levando a simplesmente enaltecer a cordialidade, sem perceber que, sem o respeito às instituições e um projeto de coletividade, junto com ela vem a violência.

* ANDRÉ MARTINS É FILÓSOFO, MEMBRO DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO RIO DE JANEIRO E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE PULSÃO DE MORTE? (EDITORA UFRJ, 2010) 

quinta-feira, 14 de março de 2013

Para pensar: Brasil

BRASIL
 
"Depois de copiar o modelo europeu por 450 anos e o modelo americano por 50, agora que ambos estão em crise e ainda não há um novo para substituí-lo, chegou a hora de o Brasil propor um modelo para o mundo"
 
"O Brasil ainda hoje é menos conhecido e valorizado do que merece. O Brasil é quase tão grande como a China, mas é uma democracia. O Brasil é quase três vezes maior que a Índia, tem quase o mesmo número de etnias e de religiões, mas vive em paz interna e em paz com os países limítrofes. O Brasil é quatro vezes maior que a zona do Euro, mas tem um único governo e fala uma única língua. O Brasil é o país onde há mais católicos, mas onde a população vive da forma mais pagã. O Brasil é o único país no mundo onde a cultura ainda mantém características de solidariedade, sensualidade, alegria e receptividade."
 
Os textos acima são declarações dadas pelo sociólogo Domenico De Masi, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo. 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Carnaval.

Que no carnaval se busca a descontração, todos sabemos, mas mesmo neste período cabe uma reflexão.
De diversas formas e maneiras vejo uma profusão de "celebridades" circulando e mostrando seus sorrisos empresariais para que nossa gente acredite que fazer, beber, comer ou usar algo é importante e necessário.
Nada contra quem aumenta seu "PIB" particular desta forma, pois até onde sei, estas "celebridades" não são coagidas a participar destes eventos e nem coagem as pessoas a acreditarem em suas "opiniões e afirmações".
O que me causa arrepios é ver um monte de dinheiro sendo depositado fora do país, já que a ilustre celebridade recebe aqui e leva para seu país de origem, ao invés de ser doado para um centro de pesquisa ou uma universidade brasileira.
A ideia pode parecer estranha, mas é muito comum na terra de uma atriz estrangeira que por aqui esteve, regiamente paga por uma cervejaria nacional. Lá, pessoas sicas ou jurídicas doam grandes somas para universidades e centros de pesquisa, com o único intuito de vê-las funcionando mais e melhor.
E porquê fazem isto? por entenderem, talvez, que investir no seu país pode ser muito mais lucrativo do que gastar dinheiro com "celebridades" de momento, por avaliarem, talvez, que se melhorarem o país de forma consistente estarão melhorando as suas vidas e as das gerações que virão.
Repito, nada tenho contra quem ganha seu dinheiro assim e entendo claramente que a empresa privada pode gastar seu lucro onde quiser, mas desejo poder ouvir no próximo carnaval que no lugar do gasto com a vinda de algum "grande astro" uma grande empresa doou uma importante soma de dinheiro para uma universidade ou centro de pesquisa brasileiro e que isto possa ser aplaudido como uma ato célebre.
Um abraço.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cultura da irresponsabilidade

ARTIGO - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA
Publicado no jornal O Globo de 0
 
A dor não cabe nas três letras de uma palavra. A dor é indizível e só cada um conhece a sua. A dor alheia se respeita no silencio e na compaixão.
A revolta, ela sim, comporta muitas palavras e outros tantos gestos que não devem ser poupados. Do que aconteceu em Santa Maria se deve falar à exaustão, discutir em cada sala de jantar, escola, em cada gabinete, da Presidente aos prefeitos, até que se chegue às raízes da tragédia. Não apenas procurar os responsáveis e puni-los mas também combater os irresponsáveis, desentranhar de nossa maneira de viver comportamentos aberrantes que, tidos como normais, cedo ou tarde desembocam em desastre. Porque o que está em causa não é só a responsabilidade específica, localizada em Santa Maria, mas a irresponsabilidade invisível porem generalizada que alimenta no país uma cultura assassina.
De onde vem o desprezo pela lei, a ojeriza à ordem? Por que no Brasil as leis não pegam e as normas não se cumprem? Por que achamos tanta graça na transgressão? Quando um elevador está superlotado, alguém grita, "entra, que sempre cabe mais um!". E, no entanto, a lotação máxima está à vista de todos. Se alguém sai em sinal de protesto, ouve o comentário: besteira. Numa mistura de estupidez e leviandade, às gargalhadas, colocamos em risco a vida uns dos outros.
O desprezo pela ordem vem do fato que ninguém teme a lei, porque acredita – e não sem fundamento – que sempre se encontrará uma maneira de contorná-la, uma propina, a influencia de um amigo, o favor de um político. A história da corrupção se enreda na história da transgressão e a explica.
O divórcio entre a população e a autoridade provém de uma desconfiança ancestral de que esse jogo não é para valer. O desprezo pela política que, confundida com o poder do Estado, aumenta cada dia – e, mais uma vez, com boas razões – não é alheio a essa confiança na impunidade.
Havia superlotação na boate em Santa Maria. Como há em tantas outras, o que não a absolve, ao contrário, anuncia novos dramas. A função pública mal exercida, a exemplo de fiscais que não fiscalizam, deixa de ser respeitada. Quem confia na presença, presteza e preparo da polícia? Quem são esses seguranças que substituem as autoridades, essa praga de gigantes embrutecidos, de terno e gravata, saídos ninguém sabe de onde, imbuídos de uma autoridade espúria, dada por quem? Convivemos com eles em cada shopping, em cada restaurante, supostamente para nossa segurança. De tempos em tempos massacram um jovem que bebeu demais. Cenas banais, logo esquecidas.
Havia seguranças na boate de Santa Maria que custaram a entender o que acontecia, preocupados com as contas não pagas. Barraram a saída. Quem lhes deu esse direito?
No dia 17 de dezembro de 1983, último sábado antes do Natal, no Harrods de Londres havia crianças por toda parte já que é tradição nas famílias pobres, à guisa de presente, levar os filhos para ver o tradicional presépio com que a loja se enfeita. Uma bandinha do Exército da Salvação tocava canções natalinas quando o prédio inteiro estremeceu. O IRA escolhera esse dia para um atentado, apostando no pânico que aumentaria o poder destrutivo de um bomba que arrasou boa parte do andar térreo, fazendo oitenta vítimas.
Em minutos, a polícia chegou ao local e coordenou a retirada de milhares de pessoas espalhadas em cinco andares. Entre a explosão e a chegada da polícia, funcionários treinados para emergências já haviam começado a organizar a saída. Ninguém pôde impedir a brutalidade do atentado, mas as medidas de segurança evitaram o pânico, a correria, gente pisoteada. Essa história, ninguém me contou, eu vivi. E não esqueci.
A vida humana, entre nós, tem pouco valor. A cultura da irresponsabilidade não conhece a prevenção. Prevenir dá trabalho e tem custos. A ganância que impregna nossa sociedade nos é, a todos, letal. Uma casa noturna que acolhe cerca de mil pessoas não tinha um mísero extintor que funcionasse. Em um prédio que frequento há anos surgiram do dia para noite, em todos os andares, extintores reluzentes, o que sempre foi obrigatório, jamais cumprido. Funcionarão? Por quanto tempo?
A presidente da Republica, emocionada, afirmou que essa tragédia não pode se repetir. Tomara que use sua autoridade para colocar um freio nessa cultura que envolve, na mesma promiscuidade, agentes públicos incompetentes e gente gananciosa. Quanto a nós, se a tragédia de Santa Maria não nos convencer de uma vez por todas que a irresponsabilidade é assassina, preparemo-nos para mais dor e desespero.
Rosiska Darcy de Oliveira é escritora


Para ver o original, clique no link abaixo:

 http://oglobo.globo.com/opiniao/cultura-da-irresponsabilidade-7466369

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

FIGURAS

Por Roberto DaMatta*
 
Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos — uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.
A palavra "figura" agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas "figura" que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.
Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.
"Figura" também significa aspecto, emblema, alegoria. Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade, faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo pelos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e o da Miriam Leitão.
E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em nevoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade pessoas.
Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar — pela roupa usada como cicatriz ou estigma — a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade mas (e ai está o ponto) não pode conduzir a igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.
Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não tem nome. São "babás": o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem postas patroas, promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste — responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?
Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade mas mantendo a intimidade que humaniza a todos não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, o problema não são somente das babás mas das patroas receosas de serem confundidas com suas "criadas" na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.
Há aqui um sintoma da silenciosa mas permanente, revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o "outro" não sabe com quem está falando. Ai temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito porque o se desconhecido se não se comportar como um inferior ele vira um inimigo.
Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário a boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.
O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação a igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que tem muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?
Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as mascaras típicas de suas figuras. Mas ai o (des)mascarar seria equivalente a revolução que tanto queremos e — eis a questão — não queremos. Senão não seriamos campeões mundiais de empregadas domésticas.

*Roberto DaMatta é antropólogo e publicou este artigo no jornal O GLOBO de hoje (23/01/2013).
 
Artigo retirado do site do jornalista Ancelmo Gois. Para ler no site original clique no link abaixo:

 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Por que a China ignora sua maior crise de fome?

Frank Dikötter - Foreign Policy - O Estado de S.Paulo

Durante décadas, a União Soviética escondeu seus horrores atrás da Cortina de Ferro. O mais trágico foi a fome provocada por Joseph Stalin na Ucrânia e no sul da Rússia, como resultado do seu programa de coletivização rural forçada, que matou de 7 milhões a 10 milhões de pessoas em 1932 e 1933.
Terras, propriedades, gado, até mesmo casas foram requisitadas, enquanto os camponeses se tornavam funcionários públicos obrigados a produzir cotas de trigo cada vez maiores. Os que resistiam ou tentavam esconder alimentos eram deportados para um gulag ou executados.
Regiões inteiras do interior da Ucrânia tornaram-se zonas de morte. Milhões de pessoas pereceram. Entretanto, Stalin conseguiu que se fizesse um silêncio total sobre a fome, enviando os que murmuravam uma palavra para os campos de trabalho forçado na longínqua Sibéria. Os dados do censo, que deveriam ter mostrado um enorme pico das taxas de mortalidade, foram ocultados durante meio século.
Mas, mesmo antes do colapso da União Soviética, em 1991, os líderes do Partido Comunista da Ucrânia começaram a investigar a carestia nos arquivos do seu próprio partido. Eles descobriram uma quantidade de documentos macabros. Algumas das provas mais chocantes foram as fotografias de crianças morrendo de fome com os crânios reduzidos a caveiras, o esqueleto pressionando a pele, pedindo um pouco de comida na rua em Kharkov, capital da Ucrânia na época da fome.
Uma das imagens mostrava corpos macilentos captados nas fotografias - uma carroça, membros reduzidos a meros gravetos, pernas abertas no meio de um monte de corpos. Não se tratava de alguns instantâneos isolados. Eram centenas de imagens. Leonid Kravchuk, que mais tarde se tornaria o primeiro presidente democraticamente eleito da Ucrânia, foi um dos primeiros a ver estas fotos. Ficou tão impressionado com o rosto das crianças mortas pela fome que convenceu Vladimir Ivashko, então primeiro-secretário do Partido Comunista da Ucrânia, a aprovar a reprodução de 350 fotografias para um livro lançado em 1990. Hoje, a fome é oficialmente lembrada em toda a Ucrânia como Holodomor, literalmente "a morte pela fome".
Um desastre provocado pelo homem de magnitude ainda maior abalou a China no final dos anos 50 e início dos anos 60. Na campanha que denominou de "O Grande Salto para Frente", o presidente Mao Tsé-tung transformou o interior do país em gigantescas fazendas coletivas em 1958, acreditando que elas proporcionariam uma utópica abundância para todos. Assim como na Ucrânia, tudo foi coletivizado: os aldeões foram privados do seu trabalho, da moradia, da terra, dos pertences e do seu sustento.
O experimento acabou na maior catástrofe que o país jamais conheceu. Pelo menos 45 milhões de pessoas morreram de fome em quatro anos, como descobri quando tive acesso, num fato sem precedentes, aos arquivos do Partido Comunista recentemente abertos na China. Li milhares de documentos: relatórios secretos dos Departamentos de Segurança Pública, detalhadas atas de reuniões dos altos escalões do partido, investigações de casos de assassinatos em massa, inquéritos compilados por equipes especiais com a tarefa de determinar as dimensões da catástrofe, pesquisas de opinião secretas e cartas de queixas redigidas por cidadãos comuns.
Algumas estavam cuidadosamente escritas à mão, outras datilografadas sobre fino papel amarelado. Algumas eram extremamente dolorosas, como por exemplo um relatório de uma equipe de investigação destacando o caso de um menino numa aldeia de Hunan que fora apanhado roubando um punhado de trigo. Um funcionário do Partido Comunista local obrigou o pai da criança a enterrar o filho vivo. O pai morreu de dor dias mais tarde. Outros documentos apresentavam o horror da fome na linguagem estéril típica da burocracia comunista.
Um relatório policial, que descobri num arquivo da província, catalogou 50 casos de canibalismo, todos numa cidade de Gansu, uma província do noroeste da China. Data: 25 de fevereiro de 1960. Local: Comuna de Hongtai, aldeia de Yaohejia. Nome do réu: Yang Zhongsheng. Situação: camponês pobre. Número de pessoas envolvidas: 1. Nome da vítima. Yang Ershun. Relação com o réu: irmão mais novo. Número de pessoas envolvidas: 1. Modalidade do crime: morto e comido. Motivo: questão de sobrevivência.
No entanto, apesar de meses de paciente trabalho, durante os quais fui selecionando material no meio de montanhas de documentos amarelados, nunca encontrei uma única foto da catástrofe naqueles arquivos. Os historiadores em Pequim explicaram a falta de documentos fotográficos dizendo que os quadros do partido na época não tinham máquinas fotográficas, porque a China era ainda um país pobre.
Não é uma explicação convincente. Os arquivos estão repletos de investigações criminais que contêm exaustivas provas fotográficas dos anos 50 aos 60, retratos de criminosos, fotos das cenas do crime, até mesmo rolos de filmes documentando disputas de terras entre fazendas coletivas. Certamente, a máquina da propaganda oficial nunca deixou de ter equipamentos fotográficos.
Hoje, é fácil encontrar fotos online, em preto e branco, do período entre 1958 e 1962, mostrando camponeses alegres dirigindo o trator de modelo mais recente em meio aos campos, de criancinhas de bochechas rosadas ao redor de mesas cobertas de frutas frescas, legumes e carne nas cantinas coletivas, e do presidente Mao andando em meio aos campos com um chapéu de palha e sapatilhas de algodão ou admirando uma colheita recorde. Há até fotos do rival de Mao, o chefe de Estado Liu Shaoqi, investigando a fome no seu distrito de origem, na Província de Hunan, em 1961.
Então o que aconteceu com as provas documentais das atrocidades mais horrendas do mundo? Os Guardas Vermelhos, os revolucionários armados de Mao durante a Revolução Cultural, provavelmente as destruíram. Mao lançou a Revolução Cultural em 1966, em parte para eliminar os funcionários de alto escalão que criticavam suas temerárias experiências econômicas que levaram à fome. Quando os Guardas Vermelhos começaram a se apoderar das instituições do Estado pela força, em 1967,os funcionários públicos destruíram os registros e todo material fotográfico - tudo o que pudesse desacreditar o "Grande Salto para Frente" de Mao.
Os cidadãos que tinham fotos da fome brutal agiram movidos pelo mesmo impulso. Rae Yang, filha de uma família de diplomatas que trabalhara para o governo no exterior, viu quando seu pais queimaram todas as cartas que haviam guardado, além de fotos antigas, e jogaram as cinzas no vaso do banheiro. Mas nem todas as provas foram reduzidas a cinzas.
É de se supor que existam ainda fotos da fome guardadas bem no fundo dos cofres do partido. E parte do material mais sensível do "Grande Salto para Frente" é ainda protegido por sigilo. Coleções inteiras - a maioria dos arquivos centrais de Pequim, por exemplo - continuam fora do alcance até mesmo dos historiadores mais conceituados do PC.
Em sua aclamada biografia Mao: The Unknown Story, Jung Chang e Jon Halliday contam que durante a Revolução Cultural, quando funcionários de alto escalão, como Liu, eram torturados até a morte, o pessoal da segurança os fotografava e enviava as fotos para Mao e para o premiê Zhou Enlai. Elas também, provavelmente, estão arquivadas em alguma secreta galeria dos horrores.
Por quatro anos, estudei a fome da era de Mao e apenas uma vez vi uma ilustração de seu horror. Em 2009, visitei um historiador num cinzento edifício de concreto nos subúrbios de Pequim. Ele também trabalhara na história do "Grande Salto para Frente", garimpando arquivos por mais de dez anos e documentando obsessivamente a fome que dizimara a região onde nascera, um condado a pouco menos de 160 quilômetros da cidade natal de Mao, em Hunan.
Pilhas de material fotocopiado estavam enfiadas em arquivos em seu amplo escritório. Questionei se ele vira uma foto da fome. Ele franziu a testa e, com relutância, puxou uma pasta com a reprodução da única imagem que ele descobrira. Ele a encontrara nos arquivos do comitê do partido de seu condado de origem, entre os documentos da investigação policial de um caso de canibalismo.
A pequena foto esmaecida mostrava um jovem de pé diante de uma parede de tijolos, olhando diretamente para a câmera, aparentemente sem qualquer emoção. Aos seus pés estava uma bacia contendo partes do corpo de um menino, a cabeça e os membros separados do tronco.
* É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE HONG KONG E AUTOR DO LIVRO 'MAO'S GREAT FAMINE: THE HISTORY OF CHINA'S MORE DEVASTATING CATASTROPHE, 1958-1962'

Artigo obtido no site do jornal o Estado de São Paulo. Para ir a página original clique no link abaixo:

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,por-que-a-china-ignora-sua-maior-crise-de-fome-,984011,0.htm