quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

FIGURAS

Por Roberto DaMatta*
 
Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos — uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.
A palavra "figura" agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas "figura" que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.
Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.
"Figura" também significa aspecto, emblema, alegoria. Até anteontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade, faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo pelos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e o da Miriam Leitão.
E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em nevoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade pessoas.
Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar — pela roupa usada como cicatriz ou estigma — a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade mas (e ai está o ponto) não pode conduzir a igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.
Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não tem nome. São "babás": o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem postas patroas, promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste — responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?
Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade mas mantendo a intimidade que humaniza a todos não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, o problema não são somente das babás mas das patroas receosas de serem confundidas com suas "criadas" na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.
Há aqui um sintoma da silenciosa mas permanente, revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o "outro" não sabe com quem está falando. Ai temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito porque o se desconhecido se não se comportar como um inferior ele vira um inimigo.
Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário a boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.
O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação a igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que tem muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?
Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as mascaras típicas de suas figuras. Mas ai o (des)mascarar seria equivalente a revolução que tanto queremos e — eis a questão — não queremos. Senão não seriamos campeões mundiais de empregadas domésticas.

*Roberto DaMatta é antropólogo e publicou este artigo no jornal O GLOBO de hoje (23/01/2013).
 
Artigo retirado do site do jornalista Ancelmo Gois. Para ler no site original clique no link abaixo:

 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Por que a China ignora sua maior crise de fome?

Frank Dikötter - Foreign Policy - O Estado de S.Paulo

Durante décadas, a União Soviética escondeu seus horrores atrás da Cortina de Ferro. O mais trágico foi a fome provocada por Joseph Stalin na Ucrânia e no sul da Rússia, como resultado do seu programa de coletivização rural forçada, que matou de 7 milhões a 10 milhões de pessoas em 1932 e 1933.
Terras, propriedades, gado, até mesmo casas foram requisitadas, enquanto os camponeses se tornavam funcionários públicos obrigados a produzir cotas de trigo cada vez maiores. Os que resistiam ou tentavam esconder alimentos eram deportados para um gulag ou executados.
Regiões inteiras do interior da Ucrânia tornaram-se zonas de morte. Milhões de pessoas pereceram. Entretanto, Stalin conseguiu que se fizesse um silêncio total sobre a fome, enviando os que murmuravam uma palavra para os campos de trabalho forçado na longínqua Sibéria. Os dados do censo, que deveriam ter mostrado um enorme pico das taxas de mortalidade, foram ocultados durante meio século.
Mas, mesmo antes do colapso da União Soviética, em 1991, os líderes do Partido Comunista da Ucrânia começaram a investigar a carestia nos arquivos do seu próprio partido. Eles descobriram uma quantidade de documentos macabros. Algumas das provas mais chocantes foram as fotografias de crianças morrendo de fome com os crânios reduzidos a caveiras, o esqueleto pressionando a pele, pedindo um pouco de comida na rua em Kharkov, capital da Ucrânia na época da fome.
Uma das imagens mostrava corpos macilentos captados nas fotografias - uma carroça, membros reduzidos a meros gravetos, pernas abertas no meio de um monte de corpos. Não se tratava de alguns instantâneos isolados. Eram centenas de imagens. Leonid Kravchuk, que mais tarde se tornaria o primeiro presidente democraticamente eleito da Ucrânia, foi um dos primeiros a ver estas fotos. Ficou tão impressionado com o rosto das crianças mortas pela fome que convenceu Vladimir Ivashko, então primeiro-secretário do Partido Comunista da Ucrânia, a aprovar a reprodução de 350 fotografias para um livro lançado em 1990. Hoje, a fome é oficialmente lembrada em toda a Ucrânia como Holodomor, literalmente "a morte pela fome".
Um desastre provocado pelo homem de magnitude ainda maior abalou a China no final dos anos 50 e início dos anos 60. Na campanha que denominou de "O Grande Salto para Frente", o presidente Mao Tsé-tung transformou o interior do país em gigantescas fazendas coletivas em 1958, acreditando que elas proporcionariam uma utópica abundância para todos. Assim como na Ucrânia, tudo foi coletivizado: os aldeões foram privados do seu trabalho, da moradia, da terra, dos pertences e do seu sustento.
O experimento acabou na maior catástrofe que o país jamais conheceu. Pelo menos 45 milhões de pessoas morreram de fome em quatro anos, como descobri quando tive acesso, num fato sem precedentes, aos arquivos do Partido Comunista recentemente abertos na China. Li milhares de documentos: relatórios secretos dos Departamentos de Segurança Pública, detalhadas atas de reuniões dos altos escalões do partido, investigações de casos de assassinatos em massa, inquéritos compilados por equipes especiais com a tarefa de determinar as dimensões da catástrofe, pesquisas de opinião secretas e cartas de queixas redigidas por cidadãos comuns.
Algumas estavam cuidadosamente escritas à mão, outras datilografadas sobre fino papel amarelado. Algumas eram extremamente dolorosas, como por exemplo um relatório de uma equipe de investigação destacando o caso de um menino numa aldeia de Hunan que fora apanhado roubando um punhado de trigo. Um funcionário do Partido Comunista local obrigou o pai da criança a enterrar o filho vivo. O pai morreu de dor dias mais tarde. Outros documentos apresentavam o horror da fome na linguagem estéril típica da burocracia comunista.
Um relatório policial, que descobri num arquivo da província, catalogou 50 casos de canibalismo, todos numa cidade de Gansu, uma província do noroeste da China. Data: 25 de fevereiro de 1960. Local: Comuna de Hongtai, aldeia de Yaohejia. Nome do réu: Yang Zhongsheng. Situação: camponês pobre. Número de pessoas envolvidas: 1. Nome da vítima. Yang Ershun. Relação com o réu: irmão mais novo. Número de pessoas envolvidas: 1. Modalidade do crime: morto e comido. Motivo: questão de sobrevivência.
No entanto, apesar de meses de paciente trabalho, durante os quais fui selecionando material no meio de montanhas de documentos amarelados, nunca encontrei uma única foto da catástrofe naqueles arquivos. Os historiadores em Pequim explicaram a falta de documentos fotográficos dizendo que os quadros do partido na época não tinham máquinas fotográficas, porque a China era ainda um país pobre.
Não é uma explicação convincente. Os arquivos estão repletos de investigações criminais que contêm exaustivas provas fotográficas dos anos 50 aos 60, retratos de criminosos, fotos das cenas do crime, até mesmo rolos de filmes documentando disputas de terras entre fazendas coletivas. Certamente, a máquina da propaganda oficial nunca deixou de ter equipamentos fotográficos.
Hoje, é fácil encontrar fotos online, em preto e branco, do período entre 1958 e 1962, mostrando camponeses alegres dirigindo o trator de modelo mais recente em meio aos campos, de criancinhas de bochechas rosadas ao redor de mesas cobertas de frutas frescas, legumes e carne nas cantinas coletivas, e do presidente Mao andando em meio aos campos com um chapéu de palha e sapatilhas de algodão ou admirando uma colheita recorde. Há até fotos do rival de Mao, o chefe de Estado Liu Shaoqi, investigando a fome no seu distrito de origem, na Província de Hunan, em 1961.
Então o que aconteceu com as provas documentais das atrocidades mais horrendas do mundo? Os Guardas Vermelhos, os revolucionários armados de Mao durante a Revolução Cultural, provavelmente as destruíram. Mao lançou a Revolução Cultural em 1966, em parte para eliminar os funcionários de alto escalão que criticavam suas temerárias experiências econômicas que levaram à fome. Quando os Guardas Vermelhos começaram a se apoderar das instituições do Estado pela força, em 1967,os funcionários públicos destruíram os registros e todo material fotográfico - tudo o que pudesse desacreditar o "Grande Salto para Frente" de Mao.
Os cidadãos que tinham fotos da fome brutal agiram movidos pelo mesmo impulso. Rae Yang, filha de uma família de diplomatas que trabalhara para o governo no exterior, viu quando seu pais queimaram todas as cartas que haviam guardado, além de fotos antigas, e jogaram as cinzas no vaso do banheiro. Mas nem todas as provas foram reduzidas a cinzas.
É de se supor que existam ainda fotos da fome guardadas bem no fundo dos cofres do partido. E parte do material mais sensível do "Grande Salto para Frente" é ainda protegido por sigilo. Coleções inteiras - a maioria dos arquivos centrais de Pequim, por exemplo - continuam fora do alcance até mesmo dos historiadores mais conceituados do PC.
Em sua aclamada biografia Mao: The Unknown Story, Jung Chang e Jon Halliday contam que durante a Revolução Cultural, quando funcionários de alto escalão, como Liu, eram torturados até a morte, o pessoal da segurança os fotografava e enviava as fotos para Mao e para o premiê Zhou Enlai. Elas também, provavelmente, estão arquivadas em alguma secreta galeria dos horrores.
Por quatro anos, estudei a fome da era de Mao e apenas uma vez vi uma ilustração de seu horror. Em 2009, visitei um historiador num cinzento edifício de concreto nos subúrbios de Pequim. Ele também trabalhara na história do "Grande Salto para Frente", garimpando arquivos por mais de dez anos e documentando obsessivamente a fome que dizimara a região onde nascera, um condado a pouco menos de 160 quilômetros da cidade natal de Mao, em Hunan.
Pilhas de material fotocopiado estavam enfiadas em arquivos em seu amplo escritório. Questionei se ele vira uma foto da fome. Ele franziu a testa e, com relutância, puxou uma pasta com a reprodução da única imagem que ele descobrira. Ele a encontrara nos arquivos do comitê do partido de seu condado de origem, entre os documentos da investigação policial de um caso de canibalismo.
A pequena foto esmaecida mostrava um jovem de pé diante de uma parede de tijolos, olhando diretamente para a câmera, aparentemente sem qualquer emoção. Aos seus pés estava uma bacia contendo partes do corpo de um menino, a cabeça e os membros separados do tronco.
* É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE HONG KONG E AUTOR DO LIVRO 'MAO'S GREAT FAMINE: THE HISTORY OF CHINA'S MORE DEVASTATING CATASTROPHE, 1958-1962'

Artigo obtido no site do jornal o Estado de São Paulo. Para ir a página original clique no link abaixo:

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,por-que-a-china-ignora-sua-maior-crise-de-fome-,984011,0.htm