domingo, 28 de abril de 2013
segunda-feira, 22 de abril de 2013
Poesia: A Procura da Poesia
Carlos Drummond de Andrade
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
domingo, 21 de abril de 2013
Drogas: legalizar ou não? se sim, em que condição?
Tenho ouvido e lido sobre um movimento encapado pelo ex presidente Fernando Henrique a favor da legalização do uso das drogas ilícitas, especificamente a maconha.
Entendo que o consumo de drogas não pode ser visto apenas como um caso de polícia, mas que deva ser analisado
domingo, 14 de abril de 2013
Rio de Janeiro: Caro demais 2!
Que a especulação e a cobrança extorsiva vem imperando no Rio de Janeiro nos últimos anos, muitos dos que aqui moram já perceberam por sofrer na pele.
Mas cobrar 3,90 reais ou cerca de 2 dólares por uma lata de refrigerante é sinal que o absurdo tomou forma de monstro. Este foi o preço que me cobraram na praça de alimentação de um shopping na zona norte da cidade.
Como estamos com a cobrança liberada, em uma economia de mercado, cabe a cada um de nós lutar contra este tipo de prática e a luta no caso se faz não comprando nada a preços absurdos, pois o valaor quem dá somos nós quando aceitamos pagar o que é cobrado.
Aposto que uma semana de forte redução nas vendas e consequente encalhe do produto faz o preço ficar bem mais manso.
Está decisão é nossa e não adianta reclamar.
Um abraço.
Artigo: Autoviolência
Artigo de Nilton Bonder, publicado na "Folha de S. Paulo" de hoje, 14/04/2013, resume a guerra que vivemos no trânsito das grandes cidades.
"E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.
"A palavra automóvel, uma viatura com mobilidade própria, pode ser enganosa. Tem autonomia de potência, mas não tem, pelo menos até hoje, autonomia de condução."
A íntegra do texto:
"Quem conduz um automóvel é uma consciência. O que talvez seja mais reflexivo nesse prefixo (auto) seja justamente a característica maior da consciência: tudo que por ela é gerido regressa a ela mesma, num efeito bumerangue, impactando e determinando quem ela é.
O carro engana fazendo parecer que é uma entidade independente, detentora de uma placa própria, quando sua identidade sou eu e meu nome. Descobrimos isso quando a multa vem personalizada, momento de susto e de breve recusa em assumir-se a autoria.
O carro faz parecer que existia outro personagem que não o próprio condutor. Porém a lataria não pode ocultar o personagem e o Renavam não pode esconder a habilitação. O insulfilm não tem como mascarar o rosto e o deslocamento não tem como deixar para trás o que foi feito.
Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no meio da rua. Porque buzinar é como chegar e gritar no ouvido do outro. Porque acelerar em direção a um pedestre é como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado. Porque ultrapassar perigosamente é como sair armado.
Porque matar no trânsito, não nos enganemos, para a consciência que conhece as nossas imprudências, é sempre doloso, sempre com a intenção de matar. O auto de automóvel nos engana a todos e a maioria é pior como motorista do que como cidadão. Tem mais pecados registrados nas fiscalizações eletrônicas, e mais ainda quando elas não estão por perto, do que na vida de pedestre.
Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais perigosa. Sinal de que nossa consciência assume que tem menos responsabilidade dentro do que fora dessa entidade.
O condutor é uma consciência e uma consciência é um bicho vestido. As sensações de anonimato e de que o pequeno espaço de nossa carroceria é privado fazem o bicho se despir como ele não faz do lado de fora. E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.
Certa vez, um rabino estava numa carroça quando começou a subida de uma ladeira. Ele não hesitou em saltar da carroça e se pôs a andar ao lado do cavalo. O cocheiro questionou sua atitude, ao que ele explicou que na subida ficava difícil para o animal. O cocheiro reagiu: "Mas é apenas um animal... Então o senhor, um ser humano, é quem tem que fazer força e ficar cansado?". O rabino respondeu: "Justamente por isso, como sou um ser humano, não quero me ver no futuro num litígio com um cavalo!".
O condutor é aquele que enxerga as interações e cuida não só para fazer o seu percurso, mas também para não se ver no futuro em litígios com animais, seja na vida real ou em sua própria consciência."
Nilton Bonder é rabino da Congregação Judaica do Brasil no Rio de Janeiro, é autor de "A Alma Imoral", entre outros"
"Quem conduz um automóvel é uma consciência. O que talvez seja mais reflexivo nesse prefixo (auto) seja justamente a característica maior da consciência: tudo que por ela é gerido regressa a ela mesma, num efeito bumerangue, impactando e determinando quem ela é.
O carro engana fazendo parecer que é uma entidade independente, detentora de uma placa própria, quando sua identidade sou eu e meu nome. Descobrimos isso quando a multa vem personalizada, momento de susto e de breve recusa em assumir-se a autoria.
O carro faz parecer que existia outro personagem que não o próprio condutor. Porém a lataria não pode ocultar o personagem e o Renavam não pode esconder a habilitação. O insulfilm não tem como mascarar o rosto e o deslocamento não tem como deixar para trás o que foi feito.
Porque fechar outro carro é como empurrar alguém no meio da rua. Porque buzinar é como chegar e gritar no ouvido do outro. Porque acelerar em direção a um pedestre é como levantar a mão em ameaça ao próximo. Porque estacionar trancando o outro é produzir um cárcere privado. Porque ultrapassar perigosamente é como sair armado.
Porque matar no trânsito, não nos enganemos, para a consciência que conhece as nossas imprudências, é sempre doloso, sempre com a intenção de matar. O auto de automóvel nos engana a todos e a maioria é pior como motorista do que como cidadão. Tem mais pecados registrados nas fiscalizações eletrônicas, e mais ainda quando elas não estão por perto, do que na vida de pedestre.
Sinal de que no carro somos outra pessoa, mais perigosa. Sinal de que nossa consciência assume que tem menos responsabilidade dentro do que fora dessa entidade.
O condutor é uma consciência e uma consciência é um bicho vestido. As sensações de anonimato e de que o pequeno espaço de nossa carroceria é privado fazem o bicho se despir como ele não faz do lado de fora. E o que vemos pela cidade são respeitáveis senhores e senhoras como bichos atrelados a um volante.
Dão vazão a violências que fora, vestidos, não dariam. Além das agressões e abusos que produzem, saem dos seus carros piores pessoas diante de suas próprias consciências. Seguem a rotina como se nada tivesse acontecido, mas trouxeram para dentro de sua casa, de sua alma, marcas de pneus.
Certa vez, um rabino estava numa carroça quando começou a subida de uma ladeira. Ele não hesitou em saltar da carroça e se pôs a andar ao lado do cavalo. O cocheiro questionou sua atitude, ao que ele explicou que na subida ficava difícil para o animal. O cocheiro reagiu: "Mas é apenas um animal... Então o senhor, um ser humano, é quem tem que fazer força e ficar cansado?". O rabino respondeu: "Justamente por isso, como sou um ser humano, não quero me ver no futuro num litígio com um cavalo!".
O condutor é aquele que enxerga as interações e cuida não só para fazer o seu percurso, mas também para não se ver no futuro em litígios com animais, seja na vida real ou em sua própria consciência."
Nilton Bonder é rabino da Congregação Judaica do Brasil no Rio de Janeiro, é autor de "A Alma Imoral", entre outros"
sábado, 13 de abril de 2013
Extermínio Público.
Pouco a pouco a prefeitura do Rio de Janeiro vem "eliminando" seus funcionários da saúde e sua rede própria através do fechamento de algumas das suas unidades.
Primeiro a maternidade Praça XV, depois um hospital dedicado à mulher em Curicica e agora o pequeno Sales Neto no bairro do Rio Comprido, unidade de atendimento pediátrico que será fechada sem qualquer explicação. Seus funcionários já foram comunicados que ou escolhem outro lugar ou estão fora e segundo consta, tudo foi decidido sem qualquer consulta ou informação prévia.
Curioso uma prefeitura fechar uma unidade pediátrica quando não existe outra para substituir. Parece uma forma escusa de se criar a necessidade de uma OS da saúde, prontinha para atender a demanda existente, desde que haja um régio contrato para tal, claro!.
E tudo isto acontecendo com o silêncio quase cúmplice da nossa imprensa.
Um abraço.
Primeiro a maternidade Praça XV, depois um hospital dedicado à mulher em Curicica e agora o pequeno Sales Neto no bairro do Rio Comprido, unidade de atendimento pediátrico que será fechada sem qualquer explicação. Seus funcionários já foram comunicados que ou escolhem outro lugar ou estão fora e segundo consta, tudo foi decidido sem qualquer consulta ou informação prévia.
Curioso uma prefeitura fechar uma unidade pediátrica quando não existe outra para substituir. Parece uma forma escusa de se criar a necessidade de uma OS da saúde, prontinha para atender a demanda existente, desde que haja um régio contrato para tal, claro!.
E tudo isto acontecendo com o silêncio quase cúmplice da nossa imprensa.
Um abraço.
domingo, 7 de abril de 2013
Opinião: entrevista
O país do autoengano
Para psicanalista, recentes erupções de violência no Rio de Janeiro mostram que, sob a fachada do ufanismo desenvolvimentista, o Brasil esconde as velhas mazelas de sua modernização imperfeita
Publicado no site do jornal O Estado de São Paulo em 06 de abril de 2013. http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-pais-do-autoengano,1017818,0.htm
Por: Ivan Marsiglia
O conceito de "retorno do reprimido", descrito por Sigmund Freud pela
primeira vez em 1895, é um mecanismo de defesa segundo o qual os
conteúdos reprimidos, expulsos da consciência de uma pessoa, tendem a
reaparecer constantemente. Três tragédias ocorridas sucessivamente no
Rio de Janeiro nos últimos dias parecem sintomas de algum distúrbio
oculto. Na manicure que asfixiou sem dó um menino de 6 anos com quem
convivia, no estupro brutal de uma turista americana que pegou uma van
em Copacabana e na agressão incompreensível que teria provocado a queda
de um ônibus de cima de um viaduto expressam-se os sintomas de um antigo
mal-estar de nossa civilização: a violência.
Nascido em São Paulo e radicado no Rio, o filósofo e psicanalista André
Martins Vilar de Carvalho vê nesses acontecimentos a ponta do iceberg do
autoengano nacional. "A propaganda enganosa da pacificação do Rio é a
mesma do Engenhão construído há só cinco anos, que corre o risco de cair
na cabeça da multidão", compara. "O Brasil vive uma espécie de
capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar
dinheiro com o social."
Doutor em filosofia pela Universidade de Nice e em teoria psicanalítica
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde é professor associado,
Martins diz ter a sensação de que tudo é feito hoje no País apenas para
montar uma fachada que esconde nossos problemas mais profundos. Isso é
perigoso e "favorece junto a pessoas com menos estrutura psíquica a
ideia de que esta é uma terra de ninguém, onde tudo pode ser feito,
inclusive crimes hediondos". O professor sustenta que as psicopatias,
embora individuais e independentes de formação ou classe social,
relacionam-se inevitavelmente ao descaso persistente com a primeira
infância em nosso país.
Na entrevista a seguir, o autor de Pulsão de Morte? - Por uma Clínica
Psicanalítica da Potência (Editora UFRJ, 2010) e O mais Potente dos
Afetos: Spinoza e Nietzsche (Martins Fontes, 2009) vê na violência que
emerge no cotidiano nacional os sinais da modernização imperfeita do
País - em especial a marca persistente da escravidão, que "naturalizou" o
fosso social brasileiro e a cultura do privilégio e do interesse
mesquinho, que se manifestam tanto na corrupção política quanto nos
instintos particularmente animais de certos empresários.
O estupro de uma turista dentro de uma van e o assassinato de
um menino de 6 anos pela manicure que frequentava sua casa parecem ter
feito o Rio despertar do sonho pacificador das UPPs para uma espécie de
‘retorno do reprimido’ da violência. O que houve?
Vejo as UPPs não como uma política ideal, mas possível, que age de
maneira razoavelmente eficaz contra o crime organizado e o tráfico de
drogas. Acontece que a violência que emerge agora não é fruto desse
contexto. No caso da van, foram uma série de assaltos e estupros
cometidos por três indivíduos e a manicure, uma mulher que cometeu o
crime sozinha. O que vale colocar em questão aqui é esse "sonho
pacificador", é a política local transformar uma iniciativa bem-sucedida
em uma grande propaganda de um Rio de Janeiro pacificado. Isso é que é
falso. Faço uma analogia, guardadas as devidas proporções, com o
Engenhão interditado. Às vésperas da Copa do Mundo e da Olimpíada, a
coisa é apresentada como se o Rio não tivesse mais problemas, virou uma
cidade organizada, valorizada... Aí um estádio que foi construído cinco
anos atrás corre o risco de desabar na cabeça da multidão. Descobre-se
que a construção foi malfeita, obviamente por algum tipo de
superfaturamento - e digo isso sem nenhum cuidado porque acho que é
preciso dizer o óbvio. É a mesma propaganda enganosa que assistimos
sobre a violência.
O colunista carioca Artur Xexéo escreveu, sobre os últimos
acontecimentos, que ‘quando a cidade se olhar no espelho e vir o que ela
realmente é por debaixo das muitas camadas de maquiagem e aplicações de
botox, talvez descubra como se tornar maravilhosa de verdade’. O Rio e o
Brasil padecem de certo distúrbio de autoimagem?
Concordo, inclusive em relação ao Brasil, que vive uma espécie de
capitalismo desenvolvimentista selvagem, que no fundo não quer gastar
dinheiro com o social, interessando-se pelo lucro a qualquer custo. A
violência que escapa nesses dois exemplos, dos rapazes da van e da
assassina do menino, é proveniente de indivíduos que refletem um descaso
social como um todo. Para usar um termo que tem origem na filosofia
política do século 17, o Brasil pode até ter um contrato social, mas ele
está muito corrompido. E o que não temos é um pacto social, não existe
um discurso de construção de fato de um país para todos. O que existe e,
mais triste ainda, é aceito, são interesses individuais ou de pequenos
grupos mesquinhos, mas não uma disposição de pensar o coletivo. A ideia
do "cada um puxa a sardinha para seu lado" está legitimada socialmente
no Brasil.
Então as oportunidades representadas pela organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas estão sendo jogadas fora?
Exatamente. Poderíamos estar aproveitando esses eventos para, dentro
de um capitalismo minimamente responsável, utilizá-los para captar
recursos para melhorias sociais. Todo mundo sabe disso, mas ninguém faz e
ninguém cobra. Há um sentimento geral de que tudo é feito no Brasil
hoje apenas para montar uma fachada. É algo muito desanimador. E que, no
meu entender, favorece junto a pessoas que têm menos estrutura psíquica
a ideia de que o Brasil é terra de ninguém, onde tudo pode ser feito,
inclusive crimes hediondos.
Na mesma semana, a queda do ônibus de um viaduto durante uma
briga banal entre o motorista e um passageiro mostrou até onde os
impulsos agressivos do cotidiano podem levar. O que o fato de ambas as
tragédias terem ocorrido no transporte público sinaliza?
Esse mesmo descaso com a coletividade. Não é por acaso que o
transporte público tanto no Rio como em São Paulo, onde nasci, é tão
ruim. E, a partir de um certo nível social ou de idade, ninguém mais
quer andar de ônibus, por exemplo, ao contrário do que acontece na
Europa ou nos EUA. O universitário que agrediu o motorista já tinha
vários antecedentes de violência física. Aquele ônibus já registrava 40
multas, quase a metade por excesso de velocidade. Os motoristas não são
fiscalizados e devem cumprir metas de número de viagens diárias. Como
motoristas despreparados e sem formação continuam dirigindo? E a
responsabilidade dessa companhia de ônibus? Por que não se interessa
pela pressão sofrida por seus motoristas, mas ao contrário a exerce e a
agrava? No caso dos três rapazes na van, também: se eles já haviam
cometido diversos assaltos e estupros, com denúncias registradas
inclusive em delegacias da mulher, por que nada foi feito? O mesmo pode
ser dito quanto às diversas irregularidades absurdas vigentes no
incêndio da boate em Santa Maria no Rio Grande do Sul, quando gestão
privada e poder público se preocupavam exclusivamente com o lucro que o
negócio gerava. É um problema não só político, mas jurídico. A Justiça
brasileira tem que renovar sua forma de funcionar. E Brasília dá um
péssimo exemplo com a corrupção, não só do mensalão, que pelo menos foi
julgada, mas no sentido amplo da palavra - por sua falta de zelo com a
res publica, a coisa pública.
De que maneira as ferramentas da psicanálise ajudam a compreender a violência?
É uma psicopatia grave a dessa moça que sequestrou e assassinou um
menino com quem convivia havia três anos. O que se percebe é uma falta
de identificação com o outro. Essas pessoas, seja a manicure, sejam os
rapazes da van, manifestam uma perversidade e indiferença para com o
outro. O processo de identificação com o outro se dá ao longo da vida,
mas fundamentalmente na infância. Quando a criança lida com cuidadores
hostis a ela, pode separar no processo identificatório - que está na
origem da capacidade de se sensibilizar com o outro - aqueles com quem
se sensibiliza e outros com por quem não sente nada. A pessoa que
desenvolve essa psicopatia pode até nutrir sentimentos em relação à mãe,
um amigo ou parente, mas não se sensibilizar, por exemplo, por uma
criança de 6 anos que conviveu com ela, como aconteceu no crime da
manicure. Ou pelas várias mulheres que esses homens estupraram, com uma
violência capaz de quebrar ossos. Isso significa que filhos de classes
mais pobres vão estar necessariamente mais inclinados a esse risco do
que os ricos que estudaram em bons colégios? Não. Está aí o caso Suzane
Richthofen para mostrar. Ou o próprio agressor do motorista do ônibus,
que tinha nível universitário. Mas é preciso reconhecer coletivamente a
importância desse cuidado na primeira infância - algo que o País não tem
feito. Um exemplo é a falta de creches boas e em número suficiente.
Aqui, de novo, não basta "entregar" fisicamente tais obras, mas se
preocupar com a qualidade do que será vivenciado lá dentro. O mesmo
acontece com a educação pré-escolar e no ensino fundamental. É algo
gritante e urgente.
Dois dos crimes que o sr. cita tiveram um componente sexual -
evidente no caso do estupro, mas presente também na acusação, feita
pela manicure, de que estaria sendo assediada pelo pai do menino. Ambos
não parecem ter sido cometidos só pelo benefício financeiro. Por que
foram então?
Primeiro, não vejo que esses crimes possam ser atribuídos a aquelas
pulsões agressivas do ser humano que Freud chamou de pulsão de morte ou
destrutiva, ou a uma pulsão sexual vista como fundamentalmente bestial.
Três rapazes que sentem mais prazer em violentar mulheres para poder ter
uma relação sexual paradoxalmente não estão encontrando o gozo no sexo
em si, mas na violência. Uma pessoa minimamente saudável, numa situação
dessas, perderia o interesse, acharia deprimente. Muito mais do que
expressar pulsões naturais ou bestiais do ser humano, eles estão se
excitando sexualmente por uma violência hedionda e atroz contra outra
pessoa. Eu vejo como parte dessa patologia comum da não identificação,
que gera uma raiva difusa e uma destrutividade por essa vítima que eles
não conhecem, como no caso da van, ou que conhecem muito bem, como no
caso da manicure. Repito: a não identificação é construída em relações
afetivamente precárias da primeira infância, não é "natural" ou
instintiva.
Seu trabalho discute a forma como o corpo é manipulado na atual sociedade de consumo. Como a violência se insere nisso?
É outro aspecto, mas que se liga a esse que acabamos de discutir. A
propagação, seja por interesses de mercado ou financeiros, de um ideal
de corpo perfeito, de felicidade financeira perfeita, de relações
sexuais performáticas, cria uma pressão psicológica social que suscita
nas pessoas que se percebem distantes desses ideais um mal-estar, que
pode se expressar em ressentimento. Que, em casos graves, pode se
expressar em violência, destruição em relação a essa sociedade em que
elas não se encaixam.
Então, a mistura do déficit social brasileiro com a expansão das possibilidades de consumo tem um potencial explosivo.
Sim. E aí podemos voltar àquele ponto inicial do sonho pacificador
não só no Rio de Janeiro, mas do momento econômico do Brasil. Do que a
gente está se vangloriando tanto? De que as classes C, D e E possam
consumir? Isso é muito bom em vários aspectos. Agora, a possibilidade de
consumir vir à frente da sociedade ter um pacto coletivo, sentir-se
coletivamente envolvida numa melhor distribuição de renda, com melhorias
na saúde, na educação e na moradia, é uma visão deturpada do coletivo. E
a violência é uma face disso.
Há diversas explicações para o caráter violento da sociedade
brasileira, desde as que culpam o trauma da colonização, as que apontam
nossa prolongada escravidão, até o precário acerto de contas com
violações cometidas durante a ditadura militar. Qual dos fatores
concorre mais, em sua opinião?
Todos concorrem, mas o segundo, no meu entender, é sem dúvida o
predominante: a nossa história de escravidão. Porque nos outros dois
outros fatores podemos até encontrar aspectos positivos. No caso da
colonização, apesar de toda a violência, tivemos a miscigenação, a
mistura de raças, que nos trouxe qualidades distintivas. Mesmo em
relação à ditadura, com a sua injustiça escandalosa, há o elogiável
sentimento brasileiro de não cultivar o ódio ou a vingança. Já a herança
escravocrata é particularmente perversa: ela cria um sentimento de
desigualdade social aceito de maneira não questionada no Brasil. E
também uma perversidade na relação de poder, a ideia de que
inevitavelmente vai existir uma elite, que esse fosso de distribuição de
renda "faz parte". É um sentimento muito ruim, muito prejudicial para o
pacto coletivo de que precisamos.
O componente sexual dessas agressões pode também estar relacionado a essa herança escravocrata?
Sem dúvida. Na escravidão, como se sabe, as negras eram também
escravas sexuais. O que difundiu uma percepção de que é legítimo
submeter sexualmente o outro à força, de que o sexo não é nem precisa
ser algo bom e consensual entre parceiros, um prazer ou uma alegria
compartilhados. Isso é cultural, não um comportamento advindo de alguma
natureza bestial do ser humano. Nem tem a ver com o sadomasoquismo, que é
um jogo compartilhado. Mas com o desprezo pelo outro e o prazer pela
violência.
Como o Brasil pode lidar melhor com esse conteúdo violento
que parece tentar negar, seja nesse ufanismo pré-Copa, seja sob a eterna
fantasia do povo alegre e festeiro?
A tese que defendo é que é inútil para o Brasil tomar a Europa como
um modelo civilizatório. A civilização, no sentido europeu do termo,
conseguiu combater uma violência primária, direta e sem mediação, ao
preço de desenvolver uma violência secundária, que se dá em nome da
civilização, de forma institucionalizada - e cujo maior exemplo são as
guerras. Há menos violência nas ruas, mas mais violência contida que
estoura no momento de uma guerra. No Brasil, a gente manteve uma
violência primária que vem junto com o nosso tão propalado caráter
cordial.
Que não é necessariamente positivo, como alguns interpretam.
É isso. A cordialidade, como bem definiu Sérgio Buarque de Holanda,
vem da palavra "coração": é uma não mediação social. Algo assim: "Olha,
vou ser muito gentil com você, se você for comigo. Mas se você não for,
vou ser muito violento". É o contrário do que ocorre na Europa, onde
predomina a polidez: mesmo pessoas muito zangadas e com raiva das
outras, mantêm uma delicadeza dissimulada no trato. Enquanto a
cordialidade aproxima, para o bem e para o mal, a polidez afasta, para o
bem e para o mal. Penso que essa reflexão pode orientar o Brasil no
sentido um projeto de coletividade: não vale a pena a gente aspirar a um
processo civilizatório tal como o da Europa, pois muito dificilmente a
gente vai aceitar essa imposição da lei, no sentido psicanalítico, pelo
preço que isso acarreta. Então, insistir nisso é insistir num
provincianismo brasileiro de pensamento que considera que o modelo dos
outros é bom em todos os aspectos e o nosso ruim em todos os aspectos.
Porém, para que serve observar esses modelos? Para tentarmos entender
que um certo respeito às instituições, um pouco de polidez, e ter um
pacto social de projeto de coletividade é preciso - mas isso pode ser
feito a nossa maneira. Mantendo o aspecto cordial do povo, que aproxima
as pessoas, mas aprendendo o valor do respeito às instituições,
jurídicas, políticas e de organização urbana. Tentar importar a polidez
europeia nunca vai dar certo e vira uma desculpa para não se fazer nada.
E acaba nos levando a simplesmente enaltecer a cordialidade, sem
perceber que, sem o respeito às instituições e um projeto de
coletividade, junto com ela vem a violência.
* ANDRÉ MARTINS É FILÓSOFO, MEMBRO DO CÍRCULO PSICANALÍTICO DO RIO
DE JANEIRO E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE PULSÃO DE MORTE? (EDITORA UFRJ,
2010)
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