por Nicholas Kristof, do New York Times em / Atualizado
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Publicado originalmente no site do jornal O Globo, em 10/11/2016. Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/saude/os-efeitos-nocivos-das-drogas-para-cerebro-em-criancas-18002325#ixzz3rAr7yJQV
Andrew Francesco era uma criança
levada, atlética e alegre, mas também dava trabalho. Quando ele tinha 5 anos,
um psiquiatra receitou Ritalina para ele. À medida em que foi crescendo, passou
a atrapalhar as aulas e foi ingerindo um número cada vez maior de potentes
medicamentos antipsicóticos, entre outros.
Os remédios pararam de funcionar, então
mais foram prescritos. Empurrado de escola para escola, Andrew foi ficando
frustrado, infeliz e, por vezes, assustador. Seus pais esconderam as facas de
cozinha. Então sua mãe morreu, aos 54 anos; e a família acredita que o estresse
de criar Andrew tenha sido um fator.
Quando
Andrew tinha 15 anos, os medicamentos atingiram sua saúde, e o menino teve uma
complicação rara por conta de um deles, o Seroquel. Numa sexta-feira, ele se
sentia bem o suficiente para ir para a escola; no domingo, ele estava com morte
cerebral.
Essa é a história que Steven Francesco,
um executivo de longa data da indústria farmacêutica, conta em “Overmedicated
and undertreated”, seu livro de memórias sobre como foi criar Andrew, seu
filho. Ele deixa claro que o problema maior — mesmo a partir de seu ponto de
vista, como um consultor da indústria — é um setor que, por vezes, coloca o
lucro acima do bem-estar das pessoas.
A questão central é: crianças com
distúrbios emocionais ou mentais tornaram-se uma mina de ouro para a indústria
farmacêutica. Medicamentos psiquiátricos para as crianças representam bilhões
de dólares em vendas por ano, e o mercado tem crescido. Entre meados de 1990 e
o final dos anos 2000, o número de prescrições de antipsicóticos para crianças
subiu cerca de sete vezes.
E agora a indústria está ficando ainda
mais voraz, em especial nos Estados Unidos. Ela está fazendo pressão para
tornar possível a comercialização de medicamentos com usos não aprovados pelos
órgãos reguladores, através de uma cláusula da Primeira Emenda — que, na
teoria, impede ao Congresso americano de infringir direitos fundamentais. A
aprovação da medida deixaria crianças com problemas de saúde mental, como
Andrew, particularmente vulneráveis. Você pode considerar a liberdade de
expressão como um direito do cidadão; mas executivos da indústria farmacêutica
a consideram como uma ferramenta para comercializar drogas para usos não aprovados.
Dois tribunais já deram pareceres
favoráveis às empresas farmacêuticas. Essa é a vitória de uma ideologia que vê
corporações como jogadoras virtuosas dotadas de liberdades individuais e órgãos
reguladores como luditas não confiáveis.
“As decisões judiciais recentes podem
corroer o processo de aprovação do FDA (órgão regulador de alimentos e
medicamentos dos Estados Unidos), que serve para proteger o público, e ameaçam
a saúde pública e a segurança dos pacientes”, adverte a doutora Margaret
Hamburg, que era, até recentemente, encarregada do FDA.
Especialistas em saúde mental temem que
estas decisões levem a “problemas terríveis por confundirem a ciência com
marketing”, afirma o doutor Steven E. Hyman, especialista em psiquiatria na
Universidade de Harvard e ex-diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental.
Francesco estima que, atualmente, 80%
dos medicamentos psiquiátricos dados para crianças são “off-label”, ou seja,
são prescritos para elas, mesmo que seu uso em crianças não esteja recomendado
no rótulo. Isso significa que o FDA não aprovou seu uso para essa finalidade.
Às vezes, o uso “off-label” faz sentido, mas deve ser feito com cuidado, não
apenas como resultado do marketing agressivo das empresas farmacêuticas,
simplesmente com o objetivo de aumentar os lucros trimestrais.
“As crianças não são apenas pequenos
adultos, porque seus cérebros ainda estão em desenvolvimento”, alerta Hyman.
A indústria farmacêutica tem mostrado,
repetidamente, por que “regulação” não deve ser considerada uma palavra feia na
política americana:
■ No início de 1960, muitos países
permitiram a “droga milagrosa” talidomida para tratar náuseas em mulheres
grávidas. Uma médica heróica no FDA, Frances Kelsey, resistiu à pressão da
indústria para aprovar a talidomida nos Estados Unidos, evitando assim milhares
de defeitos congênitos terríveis, como aqueles que o medicamento causou no
exterior.
■ Em meados dos anos 1990, as empresas
farmacêuticas argumentaram que os médicos não davam a atenção devida à dor, e,
como solução, os fabricantes passaram a fazer um marketing agressivo a favor
dos opióides. O comportamento das empresas era muitas vezes criminoso
(executivos da empresa que fabricava o OxyContin se declararam culpados de
acusações criminais), mas também extremamente rentável. Isso ajudou a causar
uma crise de dependência de analgésicos e heroína. Hoje, overdoses matam mais
americanos do que armas ou carros
■ Em uma coluna recente, contei como a
Johnson & Johnson enganosamente comercializou um medicamento antipsicótico,
o Risperdal, ocultando, por exemplo, o fato de que ele pode fazer com que
cresçam seios enormes em meninos. A J & J foi pega, admitiu a culpa e pagou
mais de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 7,6 bilhões) em multas e acordos, por outro
lado, também ganhou US$ 30 bilhões (R$ 114 bilhões) em vendas do Risperdal. O
executivo que supervisionou a campanha de marketing ilegal foi Alex Gorsky,
que, em seguida, foi promovido a diretor-executivo da J & J. Se você é uma
empresa farmacêutica, o crime às vezes compensa.
É verdade que os produtos farmacêuticos
muitas vezes salvam vidas. Eles salvaram a minha vida da malária. Steven
Francesco diz que, apesar de uma droga ter matado Andrew, outra parecia
ajudá-lo, embora a terapia com um cão ajudasse-o mais. Saúde mental de crianças
é, em particular, um assunto complicado, com nuances difíceis, que requer
cuidados extras. Pense em carros: eles, também, oferecem um benefício enorme,
mas exigem uma regulamentação cuidadosa.
Então, se você concorda com os
políticos que bradam contra as regulamentações, ou se você acha que as empresas
farmacêuticas devem se aproveitar do direito da liberdade de expressão para
vender drogas, então fale com uma família que luta contra a dependência de
opiáceos. Ou um pai de um filho da talidomida. Ou consulte a família de Andrew
Francesco.
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